quinta-feira, 31 de julho de 2008

CAVACO, HOJE, EXCEPCIONALMENTE, FALA



Como foi exaustivamente anunciado o Presidente da República, Cavaco Silva, em férias, vai falar ao país. Ao que dizem os comentadores, Presidente em férias, estando em retiro, não fala, pelo menos, aos portugueses. Pode falar com os netos, com os filhos, com a sua Maria, mas jamais aos nacionais. A menos, dizem, que seja uma comunicação importante. Se vem falar do Tribunal Constitucional e dos Açores, hum!, para esse peditório já dei! Se vem dizer que lamenta que a maioria dos portugueses não possam ter direito a férias, hum!, isso também já toda a gente sabe; Se vem dizer que vai chamar o primeiro-ministro a Belém para o convidar a atribuir o Rendimento Social de Inserção a todos os portugueses, uma vez que, discriminatoriamente, dois terços recebe e um terço trabalha arduamente para sustentar os eleitos; Se vem dizer que vai devolver a Lei do Divórcio à Assembleia da República para ser reapreciada, oh!, isso não é novidade; Se vai dizer que no próximo 10 de Junho vai condecorar o Presidente do Governo Regional da Madeira, Alberto João, por “ter tomates” e fazer o que o Governo de Portugal deveria fazer, nomeadamente em relação à lei do tabaco e a abolição da liberalização dos combustíveis, nhem!, para isso não precisava de interromper as férias.

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (29): A ÚLTIMA VIAGEM DE SALAZAR

(SERÁ ESTA PONTE, EM FUNDO,OBRA DO GENIAL EIFFEL?)



Em anterior apontamento, sobre Várzeas, a encantadora aldeia em que nasci, e lá permaneci até aos três anos, encostada como irmã siamesa ao Luso, falei do seu ex libris: a sua ponte em ferro, que se ergue das alturas, construída, segundo se diz, pelo genial Gustave Eiffel –engenheiro francês (1832-1923), responsável pela construção da Torre Eiffel, em Paris e várias pontes no nosso país.
Porém, ao falar com a minha tia Anunciação, que vive há cerca de seis décadas em Várzeas, uma dúvida se me levanta. Segundo a minha familiar, esta ponte em ferro começou a ser construída, para substituição de uma anterior também em ferro, por volta de 1955. Veio a ser colocada no lugar da anterior, já montada, em 1958. Ora, atentemos nas datas, Eiffel morreu em 1923. Sendo assim como será possível esta ponte ser da sua responsabilidade? Será que esta ponte seria da responsabilidade da empresa Eiffel, que o genial homem do ferro criou em França? Ou não seria?
Posteriormente, através do meu amigo Alcides Rego, do Buçaco, vim a saber que a renovação desta (nova) ponte e outras da linha da Beira-Alta foram adjudicadas à firma alemã Fried Krupp Stahlban Rheinhausen por 45 mil contos. Estes trabalhos foram concluídos em 27 de Maio de 1958.
Depois há outros “senões”. Segundo a minha tia, “durante mais de três anos, largas dezenas, ou centenas, de operários alemães assentaram arraiais em Várzeas, com as suas potentes máquinas de “bate estacas”. Viviam em barracas de madeira junto à ponte em construção. Como não havia água canalizada, foi construído um grande poço, junto ao moinho de água, para abastecer os operários do ferro.
No anterior texto que escrevi sobre esta aldeia, salientava o facto assaz curioso de o lugarejo com pouco mais de seis dezenas de pessoas possuir, em fins de 1950, duas mercearias com taberna. Uma a do senhor Vieira e outra a do “ti” “Manel” sapateiro. Sei agora, depois de falar com a minha tia, que esta expansão comercial, tudo indica, se deveu à construção da ponte sobre a aldeia e aos inúmeros trabalhadores que, durante anos, ali se mantiveram, constituindo, por isso, uma mais-valia importantíssima na economia do lugar.
Continuando a citar a minha familiar, conta-me ela que, em finais de Julho de 1970, aquando da transladação do corpo de Lisboa para Santa Comba Dão, feita por caminho-de-ferro, Salazar, já defunto, passou por cima de Várzeas, na ponte de ferro. Se este facto pode não constituir surpresa, já o que vou contar a seguir pode ser entendido como um facto curioso. Aquando da sua passagem, em direcção à sua terá natal, Vimieiro, nesse dia, Várzeas encheu-se de milhares de forasteiros para ver passar o féretro. Por outro lado, e também curioso, foram as dezenas de agentes da Guarda Nacional Republicana (GNR), destacados para a aldeia para fazer guarda aos “mirones”. Provavelmente, também, misturados na imensa prole de civis, dezenas de agentes da PIDE, à civil, a controlar e a prever alguma manifestação mais ousada e de índole comunista. “Se calhar estavam com medo que o atacassem e matassem outra vez”, remata a minha familiar num largo sorriso.
A verdade é que o comboio da morte anunciada de um sistema político já apopléctico, com uma carruagem inteira cheia de flores, sem paragem, passou “que nem um foguete” por cima da ponte e, para além de imensos lenços no ar a acenar ao ditador, com prantos e desmaios à mistura, não houve problema nenhum, e Várzeas, na sua pacatez, esteve à altura de tamanha solenidade.

Amor no séc.XXI

Não estou a ficar lamechas!

Vejam!!

quarta-feira, 30 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (28): O MOINHO DE VENTO


(Era um moinho, senão igual, muito parecido com este)

O homem, no aproveitamento de energias alternativas, sempre se soube adaptar à natureza e canalizar, em seu benefício, domesticando a força bruta, através do engenho, de modo a retirar dela o maior proveito possível.
Por volta de meados do século XX, em que a máquina propulsionada a derivados do petróleo ainda não se tinha democratizado, o recurso à água e ao vento era comum. Depois de décadas de esquecimento, como se a natureza não fosse uma constante lição, e, tudo o que tem para nos oferecer, pudesse ser despiciendo, encarado como obsoleto e cair em desuso, presentemente, assistimos novamente a uma viragem. Em face do encarecimento dos combustíveis fósseis, oligopólio de pouco mais de uma dúzia de países, inevitavelmente, cada vez mais o homem se vê na contingência e obrigado a retornar a um passado, que pensava caquéctico e arrumado nas catacumbas da lembrança. Ainda que modernizando os meios, salta à vista que é bom conservar a experiência anterior.
É assim que na freguesia de Luso, em plena serra do Buçaco, ainda hoje, podemos ver alguns moinhos de vento. No sopé, entre o Luso e a Mealhada, embora decrépitos, como almas condenadas à erosão do tempo, ainda persistem em existir alguns moinhos de água. Outrora garbosos, imprescindíveis na utilidade, na prestabilidade da alimentação, proliferaram nesta região, certamente pela grande abundância de líquido incolor e transparente que, neste lugar paradisíaco, brota do interior da terra como graça divina inesgotável.
Que eu saiba, exceptuando os moinhos de Sula, no Buçaco, por esta altura, o único moinho de vento existente nesta zona situava-se na colina sobranceira à minha aldeia de Barrô, com a sua cúpula erguida ao céu, como sentinela estática a vigiar o lugarejo, a pouco mais de cem metros da estrada principal que liga este povoado ao Luso e próximo do muro do Troncho. Lembro-me de, em criança, por volta de 1960, ter entrado uma vez no seu interior e ter ficado fascinado com as suas rodas dentadas, em madeira, entrosando umas nas outras, cujo eixo central movia uma grande mó de pedra, assente em cima de outra estática. Este movimento desmultiplicado, em cadeia, provinha da força das velas impulsionadas pelo vento, a energia eólica.
Ao que sei este moinho, hoje já demolido, era propriedade de vários lavradores da Lameira de São Pedro, onde o único nome que consegui descortinar era o senhor Joaquim Pedro, de alcunha “o Sardinheiro”.
Por volta desta data, na Lameira, haveria mais de meia dúzia de moleiros, sem serem proprietários de qualquer moinho. Era apenas a sua profissão, o seu ofício, hoje praticamente em desaparecimento. Relembro aqui, como ícone, um moleiro, nascido em 1910 e falecido em 2000, o senhor Manuel Gomes Pedro. Este homem do povo, esforçado trabalhador, com uma carroça, puxada por uma mula, corria toda a freguesia de Luso e concelho da Mealhada, desde Mala até ao Carqueijo. Ia a casa dos agricultores, recolhia os sacos de milho, trigo ou centeio, ia moê-los e, passados dias, na volta, regressava com os mesmos sacos, mas agora de farinha moída.
Há uma aldeia, nos arrabaldes de Luso, que se chama exactamente Moinhos, pela extensa abundância daquelas pequenas casas trituradoras de cereais. Assim como, muito próximo desta, há um outro lugar chamado Carpinteiros, onde haveria nessa época meia dúzia de moinhos tocados a água. Segundo informações fidedignas, nesta aldeia, onde a água é rainha, os velhos moinhos jazem abandonados, metem dó e fazem doer o coração, no abandono a que foram votados. Como cemitério de um passado que parece envergonhar a nossa memória, mostram a total desconsideração em honrar a história. Perante tamanha insensibilidade e desrespeito, se os nossos desaparecidos antepassados, hipoteticamente, pudessem ver o estado lastimoso a que chegou este património, que tanto os ligou à terra, estou certo, preferiam morrer outra vez.
Sendo o Luso uma Vila essencialmente turística, e inserida na Região de Turismo do Centro, não fará sentido recuperar estes museus vivos? Para quando uma rota turística de visita aos velhos moinhos de água e de vento?
Às vezes somos ricos sem o saber, porque não estimamos o que temos, nem potenciamos economicamente as suas virtudes, neste caso o nosso património histórico, e, em ladainha, de fado desgraçadinho, continuamos a apregoar a nossa pobreza.

"Mais rápido, mais alto, mais forte"


"Guia da lei chinesa para os estrangeiros que estão a chegar, de saída ou em permanência na China durante os Jogos Olímpicos” –, apresenta em 57 tópicos todos os comportamentos considerados impróprios pelo regime comunista. Como dormir na rua, participar em manifestações, usar roupa ou acessórios com slogans políticos e religiosos ou visitar “certas regiões."






O que diria o Barão Pierre de Coubertain?

Só me consigo lembrar dos Jogos Olímpicos de Berlim...

terça-feira, 29 de julho de 2008

PORQUE É QUE "ESTÁS TÃO EM BAIXO" Ó LUSO?





No domingo, como habitualmente, passei, pelo menos duas horas, a ler a jornal, em frente à “recauchutada” Fonte de São João. Já o aqui escrevi: que pena! Que “plástica”, como quem diz, que “pedrada” este projecto! O que torna esta obra unanimemente má é a convergência de opiniões. Tanto faz ser no quiosque de jornais, como na “Flor de Luso”, a opinião é comum: “depois de dois anos em trabalhos de parto, infelizmente para todos, vai sair um aborto!”
Fugindo ao habitual, no domingo dei uma grande volta, a pé, pelo Luso. O estado de alma das ruas é simplesmente decadente. Para um fim de Julho, pouquíssimos banhistas. Que saudades de outros tempos! Bem sei que, com tristeza, não é um problema único do Luso, esta falta de gente é transversal a todas as urbes e vilas. Mas que dói, dói! Se não há dinheiro para comer, como é que se pode ir para as termas passear?
Aquela artéria principal, outrora cheia de vida, com um animado comércio de rua, hoje, constata-se, há imensas lojas encerradas. Até o emblemático Café Casino está fechado. Fui andando a pé e entrei dentro do Parque de Campismo, da Orbitur, uma desolação. O abandono é notório com muito poucos campistas. Jardins mal cuidados, com erva demasiado grande. É notório o ar deprimente daquele parque. Em vez do Campo de Ténis porque não constroem uma piscina? Aquele espaço precisa urgentemente de uma mexida. Dei uma palavra à minha amiga Ana, que explora o bar-restaurante do Parque. Sem entrar em grandes detalhes, lá me foi dizendo que, “este ano, o negócio está muito fraco”.
Fui andando a pé, visitei quase todos os moinhos de água. Uma lástima, uma dor de alma! Abusivamente, penetrando pelo orifício da janela (sem janela de madeira), entrei dentro do moinho do “Ti” Benjamim “Moleiro”. Tudo abandonado, a apodrecer. Lá está a carroça, o curral da mula, a bigorna, os restos de carvão, e as três mós em posição para, se alguém quiser tomar o lugar do velho moleiro, começar a moer milho e centeio. Bolas! Aquilo é um museu. Aposto que naqueles imensos litros de água, que a vala transporta, vão muitas lágrimas do espírito do “Ti” Benjamim. Podem crer! Um homem morre fisicamente, mas a sua alma, o seu espírito, paira no local, onde viveu intensamente. Onde fez amor, onde fez pela vida, onde desfez tantos sonhos impossíveis de realizar. E aquele moinho é o berço e a história daquele homem desaparecido. Bolas! Não deixem morrer um património destes. Bem sei que não é fácil. Certamente o moinho estará inserido no mesmo artigo da casa (que está à venda), mas, a Junta de Freguesia deve sensibilizar a Câmara da Mealhada para que esta, na impossibilidade de adquirir a propriedade, pelo menos, desenvolva esforços para que o novo adquirente mantenha o moinho em funcionamento. Ao lado deste, outros dois jazem como monumento à incúria e ao desleixo de quem manda.
Continuo a andar e sigo em direcção a Carpinteiros, a Espanha, como era conhecido no meu tempo de miúdo. A mesma lástima! Pelo menos seis moinhos encontram-se em decomposição. Tudo a cair, com os telhados semi-destruidos, as rodas dentadas, na base de água, que faziam andar as mós, tudo em estado decrépito. Merda para isto! Não posso evitar esta imprecação. Falei com alguns habitantes dos Carpinteiros e é notório, sente-se o seu envolvimento e, ao mesmo tempo, o desânimo. O que eles não dariam para ver aqueles monumentos da história da freguesia a trabalhar.
Além de mais, atentemos naquele constante caudal de água. É uma pena não ser aproveitada para fins turísticos e nada melhor que pôr os moinhos em funcionamento. Depois é criar uma rota pedestre de moinhos. As nossas crianças, que pouco sabem acerca de pão, agradecem.
Bem sei, devo dizer, que o problema dos moinhos não é muito fácil de resolver, e porquê? Porque qualquer um daqueles moinhos, facilmente pode ter dezenas de herdeiros. Depois uns querem vender, outros nem por isso, preferem deixar cair tudo, outros, sabendo do interesse da Câmara em revitalizá-los, quererão uma fortuna –isto é típico. De qualquer modo, a autarquia da Mealhada tem obrigação de resolver tudo isto e, no limite, pode fazer uso de um instrumento jurídico, a expropriação, por interesse cultural.
É urgente que se faça alguma coisa, enquanto há pessoas vivas que sabem reconstruir e trabalhar com estes velhos moinhos. Se nada se fizer, qualquer dia, para além de já nada restar do edificado, nem sequer haverá memórias de um tempo que esteve na base da nossa contemporaneidade.
Alguém disse um dia que um povo sem memória é um povo sem futuro. Eu acrescento que quem trata assim os seus antepassados não pode esperar ser bem tratado pelos vindouros.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (27): O MEU AVÔ FRANCISCO

(UMA CASA BEM RECONSTRUIDA DE BARRÔ)

O meu pai, enquanto viveu, raramente falava do seu progenitor e, no limite, quando o fazia era sempre para se lhe referir como um mau exemplo. Quando eu lhe chamava a atenção para o facto de trabalhar muito, e de que deveria descansar mais, era costume, responder por entre dentes, meio zangado, a resmungar, de que tinha de labutar, os tempos futuros que aí vinham poderiam ser muito maus. Então, em conclusão, interrogava: “Queres que eu seja como o teu avô, queres? Foi um dos homens mais rico da aldeia e desbaratou tudo. Sabes que até esta pobre casa, em que vivemos, tive de a comprar ao tribunal, em praça?”.
Como o meu avô Francisco morreu dois anos antes de eu nascer, em 1954, em boa verdade, nunca tive muita curiosidade em esmiuçar as memórias relativas à sua passagem por esta vida. Já da minha avó Angélica, apesar de ter falecido, com cerca de oitenta anos, mais ou menos, quando eu teria uns sete anos, lembro-me perfeitamente dela. No fim da sua vida, psiquicamente não estaria bem. Apesar de se locomover perfeitamente não tomava banho e falava sozinha. Gesticulava como se, através de retórica, se dirigisse a uma plateia. Para além disso, levava para casa, e guardava no seu quarto, todo o tipo de lixo que encontrasse na rua. Hoje, sei que sofria da síndrome de Diógenes, que consiste na exagerada acumulação de objectos sem valor.
Quando comecei a escrever estas pequenas “estórias” disse para mim mesmo que iria saber mais coisas acerca do meu avô Francisco. Qual era a sua posição social na aldeia? Seria verdade, como dizia o meu pai, que fora muito rico e acabara na miséria? Para saber informações nada melhor do que contactar a pessoa mais idosa do lugar e foi o que fiz. Falando com a senhora Lucília Dias, que, no próximo dia 19 de Setembro, fará um século de vida, fiquei a saber que, tal como referia o meu pai, os meus avós paternos foram realmente muito ricos. Pertenciam, por laços de família, aos agricultores mais abastados de Barrô. Mas como a riqueza é de quem a poupa e gere e não de quem a herda, infelizmente para eles e todos os seus descendentes, acabaram perdendo tudo. Até o respeito dos outros e a dignidade como é hábito. A comunidade não enaltece os perdedores. Prefere um rico através de ínvios meios duvidosos, à custa de sangue alheio, a um falhado negociante, mesmo que o fracasso se deva à sua honestidade. Evidentemente que não fora este o caso.
Dona Lucília, em conversa comigo, relembra os muitos e muitos anos que trabalhou naquela outrora grande casa agrícola. Ora trabalhava nos campos, ora cuidava dos filhos e nas limpezas da casa. Para além dela haviam vários serviçais.
Segundo as suas palavras, “os teus avós fugiam do trabalho como o diabo da cruz. Nunca se agarravam ao verbo. Só mandavam fazer e mal. E, é claro, tal como hoje, o exemplo deve vir de cima, e criado mal mandado é trabalho desperdiçado”. Depois, como havia pouco dinheiro, para além de pedirem empréstimos a particulares, começaram a não pagar as contribuições, veio o Estado e, por arresto, vendeu todas as propriedades em hasta pública. Nem São Sebastião (o Santo padroeiro da aldeia) lhes valeu!”
Continua a minha conterrânea, “como ficaram sem nada, sem terras, e não tinham crédito, passavam fome como ratos. Muitas vezes, mesmo apesar de eu ser pobre, lhes matei a fome. Tristes tempos que até me dá mágoa em recordar. Coitado do teu avô, teve um triste fim. Um dia, estando a trabalhar à jorna em Vila Nova de Monsarros, ia atravessar um pequeno riacho, que não teria mais de 10 centímetros de altura de água, escorregou, bateu com a cabeça numa pedra, perdeu os sentidos, e ficou com a boca dentro daquele pequeno fio de água. Morreu afogado e, no cemitério local, lá foi sepultado em campa rasa. Triste sina aquela do teu avô Francisco. Até parece que as pessoas nascem com o destino marcado para o sofrimento. Nem na hora da morte têm sorte!”, termina esta narração com uma imprecação que faria corar uma qualquer menina puritana.

E não vai melhorar sozinho...


"Temos de ser mais rápidos. Temos condições para pôr este plano no terreno e executá-lo rapidamente”
"Esta entidade gestora vai possibilitar encontrar em todo o território, que inclui a Mata do Buçaco, a mata da Lousã e a Serra da Boa Viagem, um pólo de desenvolvimento"


Ascenso Simões, Secretário de Estado do Desenvolvimento Rural e das Florestas, In Jornal da Mealhada




A minha leitura destas palavra (e de outras) e do que tenho visto no Buçaco é a seguinte:

  • Era suposto ter-se feito alguma coisa e não se fez nada ou quase nada e a riqueza natural e arquitectónica do Buçaco continua a perder-se pela incúria dos Homens(nos quais me incluo!);

  • Há projectos para pôr em prática, realizados por instituições credíveis(nomeadamente a Universidade de Aveiro) e estamos a perder tempo com "lérias" e "tangas" porque ninguém assume a responsabilidade (e talvez os custos...);

  • Todos querem participar, nenhum quer pagar e ninguém sabe muito bem quem é que manda(até porque quem for o "dono" é que vai pagar a conta!).


PS: A foto é um bocado fraca porque o autor(eu!) não percebe nada do assunto!

domingo, 27 de julho de 2008

NOITES DE VERÃO

OLPA BIG BAND
ORQUESTRA LIGEIRA DA FILARMÓNICA PAMPILHOSENSE

Quem passou, ontem à noite, pelo recinto da Alameda do Casino em Luso, teve a oportunidade de se deliciar com a magnífica actuação da OLPA BIG BAND.
Uma actuação incluída no PAT (Programa de Animação Termal) 2008, da responsabilidade da Soc. da Água de Luso e da extinta Junta de Turismo Luso-Buçaco, a quem apresento os meus parabéns.
Com uma assistência "itenerante" a rondar a presença média de 90 espectadores, na sua maioria termalistas e passantes de ocasião, o espectáculo mereceu fortes aplausos por parte do público presente.
Ponto negativo para a adesão dos lusenses a este tipo de iniciativas.
Por desconhecimento do programa, ou por puro desinteresse, vão-se abstendo de marcar presença nestas manifestações culturais que as entidades vão proporcionando, de uma forma gratuita, para quem assiste e com alguns encargos financeiros para quem as organiza.
Porque não utilizar os locais de estilo e os estabelecimentos comerciais para a divulgação destes eventos? Fica a sugestão.

sábado, 26 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA M INHA ALDEIA (26): O BROTAR DA SEXUALIDADE



Em 1966, com quase 11 anos, fui trabalhar para o Café Mandarim, em Coimbra. Na puberdade, com as múltiplas modificações morfológicas e psicológicas a acontecerem, lembro-me das primeiras manifestações físicas da sexualidade. Se hoje, mesmo até para um pubescente, falar de sexo e das suas múltiplas consequências na procriação, é tão normal como falar do clima, naquele tempo poucos pais falavam com os filhos sobre este tema, psicossomático, importantíssimo no crescimento do homem e da mulher. Normalmente, mais no caso dos homens, a criança, sem qualquer preparação prévia, era surpreendida pelas transformações emergentes. No caso das mulheres, apesar do mesmo manto diáfano do tabu, creio que eram mais acompanhadas pelas mães, até porque, naturalmente, na mulher, o surgimento da menstruação, na sua complexidade, envolve maiores cuidados.
No caso dos rapazes, salvo raras excepções, as informações, normalmente deturpadas, eram retiradas dos amigos, habitualmente tão mal esclarecidos como qualquer um, apesar de, tal como hoje, individualmente, cada um, achar que sabia tudo sobre sexo. Em face desta pouca informação, a mulher acabava por ser encarada unicamente como um objecto de prazer e que apenas servia para procriar. E não se pense, mesmo hoje, que este sentimento está ultrapassado, sobretudo no que toca às gerações de 50 e 60 do século passado. Creio haver dados estatísticos sobre violência doméstica, tendo em conta a idade geracional, e, se a memória não me falha, esta crueldade normalmente sobre a mulher, em forma de força bruta, incide notoriamente nas gerações antecedentes às nascidas depois de 25 de Abril de 1974.
Voltando ao meu caso, porque estava longe dos meus pais, a trabalhar, a minha informação sexual era igual a zero. Como qualquer miúdo pré-adolescente, tendo em conta as necessidades do corpo, apenas sentia que precisava de uma mulher para satisfazer o meu desejo físico e me libertar do incomodativo anátema de ser virgem. E para um miúdo de 14 anos que, tendo poucas amizades femininas e, diariamente, a trabalhar, de manhã à noite, não era fácil. Nesta altura, por volta de 1970, havia uma Rua em Coimbra que, dizia-se, servia para iniciar os mais novos e alimentar o ego dos mais velhos. Era a Rua Direita, nesse tempo cheia de imensos cafés, quase todos imundos, onde imperava um ambiente fétido e um submundo de mulheres fáceis exploradas por proxenetas, o vulgo “chulo”. Apesar de a prostituição, por Decreto, ter sido proibida por Salazar em 1963, a verdade é que, em Coimbra, estas “casas de passe” funcionavam naturalmente a menos de 100 metros de uma esquadra de Polícia. Porém, mesmo com esta possibilidade formal, havia um óbice intransponível: era preciso dinheiro e não havia.
Nesta época, a hotelaria era uma profissão essencialmente masculina. Os cozinheiros, os copeiros, os lava-pratos (praticamente não havia máquinas de lavar louça, ou pelo menos eram raras por serem muito caras), os empregados de balcão e de mesa eram sempre homens. Qualquer mulher que trabalhasse na indústria hoteleira imediatamente era conotada com a prostituição, ou, pelo menos, subentendia-se que se “portava mal”. Por incrível que pareça, este opróbrio discriminatório só veio a ser erradicado plenamente já na década de 90.
Então, por volta de 1970, tinha então 14 anos e uma vontade louca de estar, pela primeira vez, com um a mulher e, entre amigos, perder o pesado estigma da virgindade, trabalhavam na copa do Mandarim duas mulheres de porte “assim, assim”, com cerca de quarenta anos de idade. Pelo menos, entre os empregados mais velhos, acerca delas, contavam-se grandes desempenhos sexuais. Então, como a necessidade obrigava, individualmente, tentei que qualquer uma delas me tirasse “os três vinténs”. Uma, a mais esbelta, alta, de cabelos compridos, apanhados, com uns seios encantadores, foi peremptória: “nem pensar! Não desmamo crianças”. A outra, já de segunda escolha, mais baixa, mais usada e com muito menos encanto, já foi mais flexível: “por 20$00 “tiro-te os três” duma forma que nunca mais esqueces na vida”. Aos meus pungidos apelos, de que não tinha esse dinheiro e precisava de estar com uma mulher, foi insensível. “Nem pensar! Colegas, colegas, amor à parte! Sem dinheiro, nada feito”. Dali não consegui nada.
Quase a fazer os 15 anos entrou para a copa (secção contígua à cozinha de um estabelecimento hoteleiro, onde se lavava a louça e se faziam sandes, torradas, cachorros, etc.) uma mulher de trinta e poucos anos, com uma pequena deficiência numa perna. Logo no primeiro dia atirei-me a ela como cão ao bofe. Se numa primeira fase, creio, ela devia ter achado graça e não ligou, numa segunda fase começou a sentir alguma piada em desmamar um miúdo. Passados poucos dias estávamos a dormir (como quem diz) juntos todos os dias. Foi um festim iniciático, pelo menos até o meu tio descobrir. Depois acabou-se, mas pouco importava. Eu tinha sido armado cavaleiro e, de olhos abertos, já com um pequeno currículo, estava preparado e parti para outras conquistas.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

HISTÓRIAS SA MINHA ALDEIA (25): UM SÉCULO DE VIDA



Corria o mês de Setembro do ano de 1908, quando a aldeia de Barrô, entre a Mealhada e o Luso, foi acordada por um grito estridente de um recém-nascido. A parteira, com as mãos ensanguentadas, grita para o pai, ansioso e alagado em suores, do novo ser nascente: “é menina, é menina!”
Acabava de vir ao mundo uma mulher que nascera no mesmo ano, em que se dera o Regicídio, em Fevereiro, com a morte do Rei D. Carlos e o Príncipe Luís Filipe, constituindo este atentado o estertor de um sistema fragilizado e caduco pela ostentação de uma classe burguesa insensível, em desfavorecimento maioritário de um povo triste e sofredor. Cairia decrépito em 5 de Outubro de 1910 com a implantação da República.
Esta mulher, concebida nos planos do Regicídio, seria baptizada com o nome de Lucília Dias. Atravessou a 1ª Grande Guerra, de 1914 a 1918, e sofreu na pele, através da fome e da carência de bens alimentares, as primeiras turbulências do novo regime político republicano.
No ano de 1929, com o mundo financeiro a abanar, através do crash das bolsas mundiais e que daria origem à grande depressão, na igreja de Luso, com convicção firme, dava o “sim” a José Morais, “o homem mais pobre que havia na Vacariça” (uma aldeia próxima), segundo as suas palavras. Em 1939, quando estala a 2ª Guerra Mundial, Lucília já tinha três filhos, duas raparigas e um rapaz. Uma delas morreu precocemente de uma doença rara que não lembra.
Lucília sempre foi uma mulher de armas feitas pela sua vontade férrea e indomável. Punha as mãos ao trabalho como qualquer um ao lazer. Tanto trabalhava no campo, como em limpezas, em várias casas. Mas havia um talento que viria a marcar muita gente da freguesia de Luso: Lucília era uma boa cozinheira. Lembra-se que cozinhou em muitas casas, fez muitas festas, muitos casamentos, e até chegou a ir, durante muitos anos, no verão, em colónias de férias, do dr. Artur Navega, da Mealhada, que, através de uma mulher de Barrô, a senhora Preciosa, levava as crianças mais pobres do concelho para a praia da Figueira da Foz.
Quando estalou a Revolução de Abril em Portugal, em 1974, Lucília estava, juntamente com a sua filha Natália, a empalhar garrafas e garrafões para várias grandes Caves Vinícolas da região bairradina, como por exemplo as Caves Messias. Trabalhavam na sua oficina cerca de 24 pessoas. Hoje só a sua Natália continua, como ícone, a mostrar uma arte em total desaparecimento.
Se por um lado guarda saudades desse tempo, por outro prefere os nossos dias. “isto hoje é uma maravilha, nem vocês sabem quanto!”, atira-me à queima-roupa, no meio de um sorriso escancarado de matreirice, com um brilhozinho nos olhos, intervalado com uma palavra obscena, tão apropriadas e ditas com a mesma naturalidade com que se diz “bom-dia!”.
Mas lembrando os tempos passados, endurecendo as linhas do rosto, referindo-se ao povo da aldeia, exclama: “é uma gente de merda, mesquinha, não valem nada!”
“Vê lá bem, continua a minha querida conterrânea Lucília, com a voz embargada pela dor, que há mais de 30 anos, quando eu mudei da religião Católica para os Evangélicos, praticamente toda aldeia deixou de me falar. Desprezaram-me completamente. Passavam por mim na rua e era como se eu fosse um cão. Um dia, já o meu querido “Zé Morais tinha morrido -o meu homem-, para matar a fome aos meus filhos, fui a casa de um grande lavrador para me vender meio alqueire de milho, e sabes o que me respondeu a mulher do ricaço? Que fosse comprá-lo aos da minha religião. Somíticos de uma figa!” Exclama no meio de uma imprecação.
Continua a senhora Lucília, “mas olha, Deus não dorme –apontando com o dedo em riste para cima-, o tempo tudo cura. Acabaram todos por me virem pedir ajuda. Fui eu, sem vinganças ressabiadas, que lhes matei a fome. Acredita, dou-te a minha palavra”, profere esta frase, já no meio de um sorriso, novamente.
Pois é! Como já viram estas palavras são de uma anciã muito querida que fará no próximo dia 19 de Setembro 100 anos. Sim, um século.
Mas se vissem a sua pele do rosto, parece que tem sete décadas. A sua lucidez é impressionante. É impossível não gostar desta mulher.

Raúl Solnado

Intemporal!

Maior génio da comédia em Portugal!

Vergonhoso!!!!



O Jumento foi atacado por alguém com muito pouco sentido de liberdade e democracia que se deu ao trabalho de "denunciar" à Google o dito blog acusando-o de ter conteúdos impróprios.

O Jumento é o melhor Blog nacional, um forte "opinion maker" e estas situações só vêm demonstrar a sua força!

Transcrevo um pequeno poema de António Aleixo que O Jumento nos deixa como recado "a esses miseráveis, herdeiros bastardos de Estaline e Goebels" que o querem calar:

Quem prende a água que corre

É por si próprio enganado;

O ribeirinho não morre,

Vai correr por outro lado.

Um centro cultural? Sedes para as associações? Um Escola Profissional ou um Pólo de Ensino Superior?



"Jornal da Mealhada:A Junta de Freguesia tem conhecimento ou participação no projecto do cineteatro do Luso?

Junta de Freguesia do Luso:Claro que não! Trata-se de um projecto da Câmara Municipal da Mealhada."





Mas também não lhes custava nada lá ir perguntar... digo eu...

quinta-feira, 24 de julho de 2008

"AS TERMAS DE LUSO" *

(IMAGEM RETIRADA, COM A DEVIDA VÉNIA, DO BLOGUE "ADELO.BLOGSPOT.COM")

“Um “Aquilégio Medicinal” do Dr. Francisco da Fonseca Henriques, datado de 1726, assinala “entre o logar do Luzo da Igreja e Luzo de além, termo do Couto da Vacariça, Comarca de Coimbra, abaixo da copiosíssima fonte de água fria, um olho de água quente, que chamam de “banho” assim como de “caldas”, mas que não se usa hoje para remédio, nem serve mais, que de regar algumas terras”.
O Dr. Costa Simões procurou investigar, conhecedor do culto e ritual do banho romano –em vão, nenhum vestígio de termas romanas. Identicamente em livros dos séc. XVII e XVIII de médicos que se debruçaram sobre o tema.
Portanto, o “fio” começa em 1726, no reinado de D. João V.
O Dr. José António Morais, da Lameira de S. Pedro, cura aqui D. Maria I (1777 sobe ao trono, morrendo a 1816 no Brasil) de grave moléstia. Recebe como recompensa uma cátedra em Coimbra e dois vistosos títulos: “Médico da Casa Real” e “Comendador do Hábito de Cristo”.
Em 1838 a Câmara da Mealhada procedeu a melhoramentos na estância termal. Mais tarde, contraiu um empréstimo de um conto de reis para novas beneficiações.
Em 1852, D. Maria II ofereceu cem mil reis e uma subscrição pública rendeu oitenta e sete mil reis.
A 14 de Janeiro de 1854 a Câmara assina uma primeira concessão. A 17 de Maio de 1895 e por alvará, entregam-se os destinos das águas à Sociedade da Água de Luso (SA), ainda hoje florescente.
O “olho de água quente” arrefeceu ou sumiu-se, pois não resta qualquer pista.
A água mineral –hipotermal, hiposalina, bicarbonetada/cloretada/sódica, gaso-carbónica- essa mantém o seu prestígio, mormente nas megapólis!
Luso com as suas excelentes instalações termais e uma captação de águas modelar é uma das mais importantes Termas Portuguesas. Recheada de unidades hoteleiras acolhedoras e de um clima temperado e calmante, proporciona aos termalistas e aos turistas as condições necessárias para que possam recuperar o equilíbrio físico e psíquico comprometido pelas agressões quotidianas da vida moderna.
A partir do ano de 1854 e por iniciativa do Professor Costa Simões, sem dúvida a personalidade que mais contribuiu para o aproveitamento termal de Luso e para o seu conhecimento, iniciou-se a construção das primeiras instalações hidroterápicas. Foi o arranque para um trabalho de desenvolvimento que não parou mais.
A água termal de Luso brota na parte central do seu balneário principal, situado no meio da vila e de um furo artesiano com um caudal normal superior a 40.000 litros/hora.
A água é límpida, cristalina, agradável ao paladar, rica em gases dissolvidos e em suspensão, que se vêem elevar numa poeira gasosa de finas bolhas. A ÁGUA TERMAL DE LUSO, deve as suas propriedades terapêuticas a dois factores principais: a sua hipotonicidade e elevada radioactividade. A temperatura da água, à boca das nascentes, é de 27 graus centígrados.
A água termal de Luso tem uma notável acção terapêutica nas afecções crónicas do aparelho Reno-urinário (litíase renal e insuficiência renal), hipertensão arterial, reumatismos, perturbações do aparelho locomotor e afecções respiratórias crónicas (bronquites, asma e enfisema).
A acção fisiológica da água termal de Luso consiste, especialmente, na estimulação da função urinária pela cura de diurese que devido às suas propriedades físico-químicas e diuréticas, exerce uma acção geral eliminadora e desintoxicante, da qual pode beneficiar todo o organismo.
Ingestão de água. Banhos de imersão simples, de emanação radioactiva e com jacto sub-aquático. Duches. Aerossóis. Fisioterapia com mobilização em piscina de recuperação funcional com água a 34º C. e em ginásios, sob a orientação de fisioterapeutas. Parafangos, tracção esquelética. Electroterapia.”

(* in Luso no tempo e na história, 1937-1987, cinquentenário de elevação a vila. Editado em em 6 de Novembro de 1987 por JUNTA DE FREGUESIA DE LUSO/JUNTA DE TURISMO DE LUSO-BUSSACO)

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (24): O BÍGAMO

(UMA CASA DE BARRÔ MUITO BEM RECUPERADA)

Naturalmente, por volta dos fins da década de 1940, em consequência da 2ª Guerra, com o racionamento de víveres, Portugal vivia tempos de uma infinita miséria. Salazar, quer por força do seu princípio moral de que mais valia só que mal acompanhado, o “honrosamente só”, quer porque não entrara directamente no grande conflito bélico mundial, mantendo-se numa neutralidade duvidosa –se tivermos em conta a exportação de Volfrâmio para a Alemanha- não aceitara a ajuda no âmbito do Plano Marshal –este programa de recuperação Europeia, instituído pelos Estados Unidos da América (EUA) em 1947, consistia em ajudar a recuperar os países Europeus aliados, afectados pela grande guerra. Também conhecido pela doutrina Truman, presidente dos EUA, viria no entanto a tomar o nome do Secretário de Estado, George Marshal.
Então, se em todo o país a pobreza alastrava, é evidente que na minha aldeia, em Barrô, entre a Mealhada e o Luso, a situação não seria melhor. Embora houvesse uma meia dúzia de lavradores abastados, a maioria, trabalhando por conta de outrem, vivia no limiar da indigência. Era natural que muitos tivessem desejos de emigrar mas poucos teriam possibilidades financeiras e a coragem para partir rumo ao desconhecido, em busca de uma vida melhor.
Mas houve um homem que arriscou em deixar aquela terra de carências de tudo. Embora não estivesse no escalão dos mais pobretãos, estava apenas um pouco acima, tinha uma casa razoável, mas não deixava de fazer parte do mesmo clube de esfarrapados. Certamente, ou porque estava farto de tanta miséria, ou porque terá pensado que os seus descendentes mereceriam um amanhã mais sorridente e mais igual aos mais ricos da terra, decidiu partir. Não se sabe se o fez por aventureirismo, se por necessidade de um futuro a que julgava ter direito. jamais saberemos o que iria naquela cabeça com chapéu.
Chamava-se Manuel Rodrigues Vieira. A 19 de Março de 1950, depois de hipotecar a casa e ter contraído um empréstimo a um onzeiro (espécie de agiota que emprestava dinheiro a juros de 11%) de Vila Nova de Monsarros, juntou uns trapos numa pequena mala de cartão e planeou ir para África. Naquele dia solarengo, 19 de Março, hoje dia do pai, naquela casa junto à capela da aldeia, os gritos eram cortantes. Quem passava não ficava imune aos choros lancinantes da Arminda, mulher do Vieira, de quase trinta anos, entrecortados pela fome, misturada com lágrimas, dos seus cinco filhos, a maioria todos crianças. O mais novo tinha 3 anos: “paizinho, não nos deixes! Não nos abandones pai!”
Mas, se cada um de nós tem um destino marcado, acredite-se ou não, o Manuel Vieira achava que tinha de cumprir o seu e partiu para terras africanas de Angola.
A Arminda, com toda esta prole, ficou numa situação desesperada. Do seu marido nunca mais ouvira falar. Quase todos dias, olhando para o carteiro da aldeia, o Daniel, Arminda pensava para com os seus botões: “é hoje que vou receber uma carta!”. Mas essa missiva nunca chegou. Entretanto a sua filha mais velha, a Augusta, começou a namorar e casou com um rapaz que se viria a revelar o salvador daquela casa que era o refúgio de tanta gente. Um grande trabalhador e pessoa muito respeitada, ainda hoje, o José Maria, o Barbeiro, que em apontamento anterior já falei dele. Como o onzeiro, o agiota, ameaçava arrestar a casa por falta de pagamento, o meu amigo “Zé”, como é conhecido pelos amigos, pediu um empréstimo em seu nome, foi a Vila Nova de Monsarros e liquidou a hipoteca e juros num total de 526 contos. Com muita luta braçal, na labuta da agricultura, e nos tempos mortos a escanhoar barbas e a cortar cabelos, a vida foi-se encarregando de recompensar o “Zé” Maria Barbeiro e, aos poucos, a paz de espírito e o desafogo financeiro regressaram aquela casa da Arminda.
Num dia de Março, de 1976, a notícia correu célere em Barrô: “O Vieira, o Angolano, regressara a casa”. Mas, se este facto já por si só era notícia, calcule-se o que não diriam as “cuscas” do lugarejo ao saberem que ele trouxera uma mulher “cabrita” e apresentara-se à Arminda para que ela desse guarida aos dois. “Um escândalo, vejam bem ao que chegámos!”, vociferavam indignadas as mulheres do soalheiro, assim conhecidas na aldeia, por cortarem na casaca de qualquer um.
Como se deve calcular o Vieira viera com o mesmo com que partira, se exceptuarmos a mulher que vinha com ele, ou seja, uma maleta com meia dúzia de trapos. Como não estava divorciado da Arminda, ainda que moralmente ali não tivesse nada, nem sequer uma boa lembrança, legalmente a casa também lhe pertencia. E aí é que estava o problema. Como fazer a coabitação no meio deste ódio, adultério e bigamia? Mas lá se resolveu. O Vieira e a sua "segunda" ficou a morar noutra casa, a dois passos daquela. Não se sabe muito bem como foram suportáveis os dois anos em que todos viveram na casa, inclusive a Isaura, a “cabrita” extra-matrimónio, mas a verdade é que até ao divórcio ser deliberado pelo tribunal foi assim.
Mesmo perante o meritíssimo, como o Vieira não tinha onde cair morto, o “Zé” Maria prometeu alimentá-lo até à morte. Este meu amigo barbeiro, com tristeza, ainda recorda o sogro, mesmo depois de tanto ser ajudado, a dizer ao juiz: “o meu maior prazer era não deixar cinco tostões a ninguém!”
Como quem não dá não recebe, o Vieira, depois do divórcio, partiu com a sua amante Isaura para Viseu e lá veio a morrer na mais completa indigência.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (23): AS FÁBULAS DO MEU TIO MANEL

(A SECULAR CAPELA E O LARGO EM VÁRZEAS -foto retirada, com a devida vénia, do blogue "Adelo.Blogspot.com)

Todos nós, dos tempos da nossa infância, recordamos sempre alguém, que pode ser chegado, familiarmente ou não. É naqueles momentos de nostalgia, como se viajássemos no tempo, que de repente lá vem a imagem desse ente tão especial, que, durante o tempo da nossa meninice, povoou e encantou a nossa recente vida.
Na parte que me toca, lembro-me de vários tios que foram a alavanca de partida para um futuro de trabalho que se avizinhava. Por agora, vou apenas falar de dois, muito especiais para mim.
Viviam em Várzeas, uma pequena aldeia mesmo juntinho ao Luso, pegadinha como paredes-meias. Embora irmãos, eram antagónicos na forma de viver a vida. E, do seu feitio tão contrário de ser, só posso entender como sendo atribuído aos genes cromossomáticos. Um, hereditariamente, saiu ao pai –o meu avô Crispim-, outro, geneticamente, veio a ser bafejado com o lado bondoso e puro da mãe –a minha avó Madalena.
Este, o que veio a adquirir por parentesco o lado maternal, puro e bom, era o meu tio Albertino. Com o seu ar simples, transpirando sobriedade, seriedade e serenidade. Ao longo da vida, estou em crer que nunca teria enganado ninguém. Mesmo se alguma vez o quisesse, os seus traços de genuíno homem recto tê-lo-iam traído e não teria conseguido passar a perna a ninguém. O normal era ele, dentro da sua encantadora ingenuidade, ser facilmente passado na cantilena de um qualquer burlão barato. Nasceu pobre e, na sua aceitação de vida, pobre morreu.
Lembro-me muito bem deste meu tio. Ele, por volta dos anos de 1960, era fogueiro (colocava as aparas de madeira para queimar numa grande caldeira de combustão) numa serração que existia, por esta altura, junto aos Refrigerantes Buçaco e à estação ferroviária de Luso. Muitas vezes fui vê-lo trabalhar naquele ambiente de calor infra-humano. Como era juntinho à estação, e sempre que passava um comboio, volta e meia, ouvíamos um estridente grito, que quase estoirava os tímpanos de quem por ali andasse. Era a senhora Rosalina, que vivia nos Moinhos, um lugar ali próximo, e vendia umas encantadoras bilhas de água, chamadas “pichorras”, por vinte e cinco tostões: “Águuaa dee Luusssooo!
O outro familiar, que certamente herdou o carácter do pai, era o meu tio “Manel”. Este homem, um efabulador de histórias mirabolantes, foi de todos, para mim, o “must”, o meu modelo recalcado de uma memória que nunca esquecerei, o paradigma da saudade. É difícil de descrever este sentimento, mas, para mim, recordar este tempo, é como quando necessitamos de acalmia espiritual e imaginamos um vale coberto de erva verde e um riacho de águas límpidas a correr. Assim recordo este meu tio, sentado no adro da capela, com o seu sorriso fácil, entre a matreirice e a conveniência. O seu sorriso era como a sua alma materializada no seu rosto. Era tão normal tê-lo impregnado na sua cara que, para mim, era impossível dissociá-los, como se, ao nascer, em vez de chorar, trouxesse estampado no rosto aquele riso fantástico. Mentia, ou teatralizava, com uma facilidade de fazer inveja ao melhor actor do nosso Teatro Nacional D. Maria II. Quem não o conhecesse, jamais diria que ele fantasiava. Não sei se era a fantasia que, duma forma natural, se lhe colava, se era ele, duma forma fascinante, como num sonho de menino, vivia autênticas megalomanias.
Sendo ele muito pobre, era como se, desta maneira, tentasse trocar as voltas ao destino. Mentia tão naturalmente que, em qualquer situação, era como se estivesse lá e fosse mesmo o personagem principal, apesar de saber que tudo aquilo que descrevia com mestria e uma convicção inexcedível e ao pormenor era falso.
Quando eu chegava ao pé dele fazia sempre a pergunta sacramental: então ó tio como é que estamos de vacas? “Ó rapaz, são muitas, cada vez tenho mais. Ainda agora comprei três mil. Se calhar tenho de adquirir outra quinta. Não sabes quem queira vender uma?”. Interrogava-me ele, de ar sério, perante o meu semblante compenetrado.
Então e pessoal para trabalhar, você arranja? Já deve ter um exército, imagino, interrogava-o e tentando a minha melhor performance.
´´Oh, oh. São milhares! São tantos que, calcula que quando estão todos sentados para comer, numa extensíssima mesa de quilómetros, se for batatas com bacalhau, anda um funcionário de patins, em cima dela, com um grande regador (de 10 litros) a temperar a comida”.

terça-feira, 22 de julho de 2008

GRANDE HOTEL DAS TERMAS DE LUSO




Serve este post para endereçar os parabéns ao Grande Hotel das Termas de Luso pelo seu 68.º aniversário.
Dada a diversidade de datas apontadas como dia da sua inauguração, fiquei sem saber ao certo qual a data, senão vejamos:
Pela ementa, dia 20 de Julho de 1940. Pela placa colocada na frente do Hotel, dia 22 de Julho. Pela brochura cuja capa se publica neste post e pelo livro dos 150 anos da Soc. da Água de Luso, dia 27 de Julho.
A grande afluência à Estância Termal de Luso e a insuficiência de bons alojamentos capazes de acolher a clientela, começavam a justificar a contrução desta grande obra.
No livro dos 150 anos da Soc. da Água de Luso 1852/2002, pode ler-se:
"Em 1937 foi proposta em Assembleia Geral Extraordinária, a construção de um hotel e de uma piscina, cuja construção se iniciou no ano seguinte - 1938 - segundo um projecto de autoria do arquitecto Cassiano Branco."
"O Grande Hotel das Termas de Luso foi inaugurado a 27 de Julho de 1940 e a sua Piscina Monumental (Olímpica) foi inaugurada a 10 de Agosto de 1941."
De realçar e homenagear ainda os grandes impulsionadores desta obra: Prof. Bissaya Barreto e Messias Baptista.



HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (22): AS VÁRZEAS DO MEU AMOR


(VISTA PARCIAL DE VÁRZEAS, ONTEM E HOJE -IMAGENS RETIRADAS, COM A DEVIDA VÉNIA, DO BLOGUE "ADELO.BLOGSPOT.COM")

Ainda não o escrevi, nesta longa série de memórias, mas, embora Barrô seja a aldeia onde me criei, e praticamente dela retenho todas as recordações, em boa verdade, não posso passar sem falar do lugar extraordinário onde vi a luz pela primeira vez. Nasci numa pequena aldeia próximo do Luso. Para quem não sabe, esta vila fica situada no sopé da serra do Buçaco. Como todos sabemos, ou pelo menos quem conhece, é uma terra encantada pela profusão de nascentes de água límpidas e cristalinas, medicinais e de mesa, que brotando das profundezas da terra, mostram a generosidade com que a natureza presenteou este lugar idílico e de sonho.
A povoação de que vou falar, e em que nasci, é atravessada pela linha da Beira alta, por uma longa ponte de ferro, que é um ex libris do génio humano, do grande arquitecto Gustave Eiffel. É uma das poucas pontes construídas em Portugal e saídas do engenho criativo do grande construtor da Torre Eiffel, em Paris. Este paradisíaco lugarejo, erguido há séculos num vale que certamente na era glaciar, há milénios, fora um rio, é circundado, quer por um lado quer por outro, por altas cercanias. As suas terras, como enclave, protegidas dos ventos, férteis para agriculturar, foram durante décadas o sustento dos seus autóctones. Era do amanho da terra negra e fértil, acompanhadas por um pequeno rio em toda a sua extensão, que se alimentavam as cerca de, aproximadamente, seis dezenas de pessoas, no ano em que nasci, em 1956.
Nesse tempo, para quem a visitasse, era uma aldeola como tantas outras, que, facilmente, poderia representar o postal ilustrado do Portugal esconso, atrasado e rústico, não fora algumas diferenças que a tornavam diferente, quer na afabilidade das suas gentes, quer num facto que, hoje, considero curioso: a aldeia, apesar de diminuta e de pouco poder económico, tinha na sua rua principal duas mercearias e tabernas. A primeira era a do senhor Vieira, bom homem, mas um pouco reservado e austero. A segunda, mesmo ao cabo da rua, junto ao largo da capela, era a mercearia e taberna do “ti Manel” sapateiro. Trato-o assim, de forma carinhosa, porque para além de assim ser reconhecido na época, era um pequeno homem na estatura, mas enorme na simpatia, tanto ele como a esposa, a “ti” Maria do Céu, que normalmente estava à frente do negócio de copos e mercearia. Para se aceder ao estabelecimento, descia-se uma série de degraus, uma vez que ficava abaixo do nível da rua.
“ti Manel” tinha a oficina de sapateiro, conjuntamente com a habitação, a meio da artéria principal. Era nesta arte ancestral, de manufactura de calçado, que ocupava os seus dias e, em complemento com o pequeno estabelecimento de mercearia, juntamente com os proveitos da terra cultivada, tudo junto, perfazia os seus parcos rendimentos, permitindo-lhe viver modestamente. Falei neste afável casal porque, curiosamente, consigo recordar, como se fosse hoje, o ar cândido, pessoa boa, de coração aberto, da “ti” Maria do Céu que quando me via dava-me sempre um rebuçado. Como tinha de passar, inevitavelmente, à frente da oficina do marido, do “ti Manel”, recordo, deste, o seu largo sorriso, sempre que me via. Com a sua voz palheta, mais para o agudo, parecendo envolver-me em mil abraços com as suas frases revigorantes e cheias de sentido anímico.
Quando eu fizera três anos, na procura de uma vida melhor, os meus pais abandonaram Várzeas e fomos viver mais para norte, para uma aldeia, Barrô, a cerca de mais de meia-dúzia de quilómetros. Então, como era tão acarinhado por toda a gente do pequeno lugarejo, era para mim um gosto indescritível de prazer sempre que lá voltava a visitar os meus avós e os meus tios. Teria eu cerca de quatro anos quando morreu a minha avó Madalena. Apesar da minha tenra idade, consigo, ainda hoje, visualizar a sua imagem e a sua cara ternurenta. De baixa estatura, anafada, de avental, sempre de avental, e o seu inesquecível rosto sofrido mas imensamente sereno.
O meu avô, ainda que tivesse morrido já eu com, mais ou menos, sete anos, curiosamente, não consigo relembrar os traços do seu rosto. No entanto, pasme-se, é pelo olfacto que chego à sua memória. Ele vivia, já depois de viúvo, num rés-do-chão, na rua principal da aldeia e tinha por costume espalhar serradura no chão. Hoje, seja onde for, numa serração ou noutro qualquer lugar onde haja serradura, pelo cheiro dela, lembro-me do meu avô Crispim.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

TRADIÇÕES (1)

FESTA DE S.TA MARINHA - PAMPILHOSA
ENFEITE DAS RUAS

"Este ano vai renascer uma antiga tradição pampilhosense, mas que já não se verifica há cerca de vinte anos: as ruas da parte alta da Pampilhosa vão ser enfeitadas pelos habitantes das mesmas para participarem num concurso organizado pela Comissão de Festas."
E, continuava o Sr. Tomé, presidente da Filarmónica Pampilhosense, associação organizadora dos festejos da S.ta Marinha 2008, ao Jornal da Mealhada de 2008.07.16: "É para recordar uma tradição antiga, para as pessoas se unirem mais. As pessoas ficam mais envolvidas e têm momentos de convívio."

Só nos resta saudar tal atitude. A festa termina hoje e os enfeites mostram o envolvimento das pessoas em prol do bem comum. O resultado foi bastante positivo, pelo que devem continuar.

A MENSAGEIRA DA PRAIA

(FOTO DE PAULO ABRANTES)

Seriam cerca de 11,30 da manhã. Eu estava deitado na areia, com o mar à minha frente, em lençol de azul celeste estendido quase até aos meus pés. Embora distendido em toda a minha descontracção, os meus olhos, naturalmente, para além de abraçarem a linha do horizonte, onde de vez em quando se perfilava uma traineira, mesmo sem o querer, perscrutavam tudo o que se passava à minha volta.
Comecei por ouvir a sua voz cristalina, dirigindo-se a outros grupos de banhistas, que, relaxados, como eu, livres dos problemas do dia-a-dia, apenas motivados em gozar o momento em toda a sua plenitude, com o barulho das ondas, enrolando-se na areia beje-acastanhada, pouco estavam interessados em ladainhas místicas: “Bom dia meus irmãos, podem escutar-me um pouco?”, interrogava, em apelo sentido, a mulher de cerca de sessenta e poucos anos, com cabelos brancos bem cuidados pelos ombros, de boné branco, à marinheiro, t-shirt cor de laranja e saia a meia altura. Pendurados ao pescoço, três terços. Na mão direita uma cartolina em dimensões de folha A4, de cor azul-céu, com uma cruz desenhada a preto, e na base a palavra “DOZULÈ”. Na mão esquerda um terço médio com uma cruz saliente, que, à medida que ia falando, balouçava.
Reparei como as pessoas, umas a seguir às outras, todas despachavam a mulher como se ela tivesse incubado um vírus mortal. Mas, para minha admiração, como predestinada, ela não desistia e passava a outro grupo. À medida que se aproximava comecei a desejar ansiosamente que ela parasse ao pé de mim. Que motivação extraordinária poderia levar aquela mulher a percorrer, de lés-a-lés, a praia da Figueira da Foz?
Eu sempre tive uma atracção fatal por pessoas invulgares, que se salientem no quotidiano. Como jornalista em busca da notícia, sempre que posso, procuro falar com estas pessoas. O que os move? Porque agem desta ou daquela maneira? Tenho de confessar que adoro estes “cromos”. Para mim, são arte viva interactiva. Pode, aparentemente, não ser consensual, mas se levarmos em conta que “arte” será toda a manifestação artística que provoca os nossos sentidos, neste caso, então tem lógica o que defendo. Para além disso, há várias décadas, li a entrevista de um grande advogado francês que defendia que, nas cidades, os loucos, os pedintes e até os pequenos assaltantes (do furto ligeiro) eram a quebra na rotina. Eram estes personagens que impediam que tudo fosse formatado de uma forma igual. Considerava que estes “outsiders” eram uma quebra no continuum do quotidiano.
Voltando à senhora da praia, reparei que ao soarem as doze badaladas na igreja de Buarcos a mulher soergueu-se, perfilou-se, juntou as mãos erguidas ao céu, e durante escassos minutos rezou uma oração. Passado pouco tempo estava junto a mim, a interrogar-me: “Boa tarde, meu irmão, queres escutar-me um bocadinho?”. À minha anuência não manifestou surpresa. Como se as imensas “tampas” que apanhara até aí nada significassem, ou se tiveram impacto foi para a empurrarem para a frente com mais força ainda.
Aos poucos, discretamente, sem ser muito incisivo, fui fazendo as minhas perguntas acerca da sua motivação para, naquela hora de imensa canícula, percorrer a praia, como mensageira de fé a pagar uma promessa.
“Tudo começou há cerca de dez anos atrás. Ia a sair da Igreja de Santa Cruz, em Coimbra, quando dei de “caras” com as três irmãs, que à entrada do templo entregavam uma mensagem de Cristo. Foi como se tivesse recebido a luz de Deus. Naquele momento eu transformei-me. Tornei-me noutra pessoa melhor. Então, a partir daí, eu rogava ao Pai porque não falava Ele comigo? Passados tempos comecei a sonhar e, nesses sonhos, eu trocava impressões com Ele. Ele disse-me:”Espalha a minha palavra!”, prossegue a minha entrevistada.
“Então é o que faço. Espalho a palavra do Senhor! Este mundo está perdido, ninguém leva a sério a palavra de Deus. Vão todos pagar fortemente. O fim está próximo!”.
Quando lhe pergunto se tem tido sucesso em converter pessoas, e, nomeadamente o seu companheiro é católico? Responde a senhora da areia: “eu espalho a palavra, quem quer houve, quem não quer não houve. As pessoas são muito más. O que mais me custou, aqui na Figueira, há uns anos, foram dois casos. Num deles, dirigi-me a uma mulher, perguntei se me podia escutar, e ela, furibunda respondeu-me em altos gritos: “Vá para a puta que a pariu sua fanática de merda, se eu tivesse aqui um pau enfiava-lho num sítio que eu cá sei!”.
Noutro caso, foi um homem, há pouco tempo, insultou-me que ainda hoje me sinto ferida: “Olhe vá para o “carvalho”, vá lavar louça, vá coser meias, sua vendilhona do templo!”, continua a mulher a responder-me.
“Quanto ao meu companheiro, é o meu calcanhar de Aquiles, não consigo convertê-lo. Está aposentado da função pública. Mas também pouco me importa, nós fazemos uma troca: ele sem ser religioso, precisa do meu lado espiritual e eu preciso do dinheiro dele.
Despediu-se com um “até sempre meu irmão, ainda bem que há pessoas de fé como tu”. Entrega-me um panfleto com uma oração, acompanhado de uma recomendação: “não destruas esta mensagem de Deus. Amanhã tira várias cópias e, quando passares numa qualquer rua, coloca-as, uma a uma, debaixo das portas. Nunca nas caixas de correio, que, agora, por causa da publicidade, ninguém lê a palavra do Senhor. Ouviste bem, meu irmão?!”

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (21): A TOUTINEGRA DO MOINHO


(O MOINHO DE BARRÔ, JÁ COM A PONTE EM CIMENTO)

Sem precisar a data, por volta dos anos de 1930, o meu avô Francisco, –que pelo que o meu pai dizia fora muito rico e perdeu tudo -conjuntamente com o Joaquim Paulo, o Alexandre Duarte, o Joaquim Matos, a Angélica Fernandes, o José da Cruz, o Daniel Fernandes, a Rosa de Melo e a Teresa Fernandes, construíram um moinho de água, na minha aldeia de Barrô, junto à represa que, formando um pequeno lago no rio, para além de servir para regar os campos do Barreiro, era a piscina pública da miudagem.
Tantas vezes tomei banho naquelas águas cristalinas, envolvido pela sinfonia desafinada do coaxar das rãs, numa espécie de serenata ao deus-sol, tentando apanhar uns minúsculos peixes cabeça de tremoço, acompanhado pelo soprar do vento nos interstícios do canavial e um imenso chilrear da passarada.
Por volta do início dos anos 60, tendo eu então cerca de cinco anos, o meu pai, por óbito do meu avô, era herdeiro de 22 horas por ano de moagem no velho moinho. Quando calhava, ia à noite. Ele, carregando um pesado saco de milho, mesmo em pleno inverno, eu com uma lanterna de petróleo a balançar, como espada em riste a cortar o breu da escuridão, mirando uma tosca ponte de madeira, constituída por dois grossos rolos de eucalipto e forrados a travessas de aparas de pinho, que atravessava o rio de uma margem para a outra em direcção ao moinho.
Para quem não sabe, os moinhos estavam localizados junto dos cursos de água. Normalmente tinham um regueiro próprio que se iniciava, a montante, junto do rio e seguia em paralelo com este até incidir sobre uma grande roda de água, constituída em madeira por uns raios largos ou lemes. Esta roda, ao ser tocada pela força da água em jacto, gerava, através do movimento, uma força cinética que fazia mover uma mó em pedra granítica pesadíssima. Consoante a regulação mecânica pretendida, esta pedra esmagava completamente os cereais. Ainda me lembro do ruído desta pedra a rodar sobre outra. O ruído do atrito fazia lembrar os velhos comboios, pum, pum, pum, pum.
Era engraçado ver o meu pai, depois de apanhar a farinha para um saco, ficar completamente branco, chamuscado pela alvura, como se tivesse sido caiado por uma mão invisível. Depois de transportar a farinha para casa depositava-a numa arca de madeira. Era aí que a minha mãe a ia buscar e, num longo ritual, depois de amassada a massa, onde incluía umas rezas e um benzer, ia então acender o forno a lenha. Cozer a broa era sempre um dia de festa. Não porque tivesse alguma coisa de novo, penso, tão-somente que por ser um acontecimento que quebrava a modorra habitual, ou talvez o cheiro à pasta e ao odor do fumo do forno a lenha tão característico das aldeias. Ou, sei lá, talvez saber que nesse dia iria comer broa quente, tantas vezes com sardinhas lá dentro. Conseguem antever o sabor da broa quente, bem cozida e com todo aquele amor? Claro que conseguem! Basta imaginar.
Mesmo em criança nunca fui bom ornitólogo. Isto é, nunca percebi nada de pássaros. Não deixa de ser curioso, porque os pássaros sempre me encantaram. Em tempos de nidificação, dava tudo para encontrar um ninho. Quando achava um era como me tivesse saído a lotaria. Ficava ali parado a olhar aqueles pequenos seres indefesos de bico aberto no ar. Depois, nos dias subsequentes, todos os dias ia visitar o “meu” ninho, acompanhando o crescimento dos pequenos passarinhos. Até que, inevitavelmente, um dia chegava lá e encontrava-o vazio.
O único pássaro que conhecia era a toutinegra, hoje, infelizmente, quase em desaparecimento. Muitas vezes, durante o dia, ia sozinho para junto do moinho. Ou fosse pela farinha ou pela proximidade da água, quando lá ia estava sempre pousada no beiral uma toutinegra. Eu sentado na pedreira, ela em cima, vigiávamo-nos mutuamente. Eu apreciava o seu longo rabo, as suas elegantes pernas e a sua profusão de cores. Talvez invejasse a sua liberdade. Ela, provavelmente, olhando desconfiada, interrogava-se o porquê da minha curiosidade. Às vezes dava por mim a falar com ela e, tantas vezes, imaginava que ela falava comigo. Durante muitos anos a toutinegra do moinho foi a minha melhor amiga e confidente.

Era tão simples...


Em conversa de café surgiu o inevitavel tema "fonte de S.joão" que derivou para o fontanário da imagem (quem me diz como se chama?) que, além de muito bonito, tem resistido ao peso dos anos e à incúria dos Homens estoicamente!
Quando mencionei a sua possível recuperação um dos presentes comentou que já tinha pedido a um dos membros da Junta de Turismo para procederem à substituição da lâmpada da iluminação do dito fontanário, que está fundida (e que eu nem sabia existir!), para tornar o espaço mais simpático e que nem isso foi feito!
Ora, depois disto, fiquei sem palavras e quase perdi a esperança de ver este espaço recuperado e incluído num "passeio-público" devidamente sinalizado e "arrumadinho" que ligaria a Avenida ao Lago, passando pelo Largo do Casino e pela "estrada velha", que certamente proporcionaria momentos bem agradáveis aos Lusenses e a todos os que nos visitam!
E era tão fácil...

Eu não gostava muito mas...

Quem nos diz quando veremos a próximas versão?

domingo, 20 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (20): A LERPA

(A LERPA É UM JOGO QUE SE PRATICA COM TRÊS CARTAS)

Quando acabei a escola primária, em 1966, na minha aldeia, em Barrô, entre a Mealhada e o Luso, escrevi uma carta a um meu tio que trabalhava em Coimbra, como cozinheiro, para que me arranjasse emprego. Passados poucos dias recebi uma missiva a dar-me conta de que tinha trabalho. Nesse dia, não cabia de contente. Finalmente ia ver-me livre daquela terra, daquele ambiente que julgava miserável e causador de tanto sofrimento que sentia. Claro que a aldeia não tinha culpa do meu pai me obrigar a trabalhar todos os dias, Domingos e feriados, e até de noite. Durante a semana, mal finalizava as aulas, tinha de ir logo a correr para casa, para ir apanhar, através de ceifa, dois molhos de erva. Raramente tinha tempo para brincar com as outras crianças. Muitas vezes, de noite, o meu pai obrigava-me a ir com ele regar a leira do Barreiro. A água, provinda da represa –onde, muitas vezes no verão, servia de piscina comunitária aos mais novos e onde o cantar, em forma de serenata, dos ralos e o coaxar das rãs era música celestial para os meus ouvidos- era atribuída por sorteio, de modo que poderia perfeitamente calhar às três horas da manhã. E o meu pai, imbuído de um sentido de dever educacional, de que um filho só aprendia a trabalhar, trabalhando, e desde pequenino, não perdoava. Era do trabalho que tudo vinha, resmungava, amiúde, quando eu, recalcitrante, tentava pisgar-me.
Perante a minha atracção pela cama, às vezes bufava como toiro enraivecido, lamentando trabalhar que nem um galego, que o seu pai não lhe deixara nada, e, entre apodos de calaceiro e malandro, retrucava sem parar: “dormes muito, nunca há-des ser nada na vida”. Ao longo da minha ainda curta existência, tantas vezes repetiu esta frase que, se por um lado me irritava solenemente, por outro, desencadeou em mim uma espécie de desafio. Para dentro de mim, pensava: um dia hei-de provar-lhe que se enganou. É curioso, com toda a honestidade, acho que, enquanto viveu, passei a vida toda a querer provar-lhe que estava enganado. Ainda hoje consigo sentir o efeito daquelas palavras como o silvar de um chicote.
Está bem leitor, eu sei que, como sempre, fugi ao tema, mas já irei retomar sem mais demoras. Dizia eu, então, que tinha recebido a carta do meu tio a prometer-me emprego e fiquei esfusiante de alegria. Por coincidência, nesse dia, o meu pai recebeu a visita de um amigo, o senhor Martinho, homem de grande saber, que falava pelos cotovelos, de farta bigodaça, como vassoura de piassaba, um grande chefe de mesas, de Várzeas, e, é claro, corri a dar-lhe a novidade: vinha trabalhar para Coimbra. Perante aquela grande notícia, o nosso amigo não enjeitou a oportunidade de me dar uns conselhos morais em pacote: “nunca sejas refilão, faz sempre o que te mandarem sem reclamar; se acaso te perguntarem se tu sabes fazer bem uma determinada coisa, mesmo que saibas bem, nunca digas que sabes; nunca te metas em jogos, o jogo desgraça mais que as mulheres; no mínimo deves estar um ano por um qualquer emprego por onde passes, caso contrário, vão achar, por aqui, que és um estafermo de um mandrião”.
Vim então para Coimbra, para a Praça da República. A minha principal preocupação era que no mínimo deveria estar um ano no primeiro emprego –curiosamente estive lá quase seis anos. Trabalhava de manha até à noite. Embora tivesse duas horas de intervalo e um dia de folga. Essas horas de lazer eram passadas nos bilhares do ACM, Associação Cristã da Mocidade, e nos bilhares do Fontes, do café Moçambique. Como passava lá o tempo, apesar de puto, tornei-me um bom jogador de Snooker, onde me confrontava com outros muito mais velhos do que eu a jogar a dinheiro, à “seguidinha”. Alguns deles, lembro-me, valendo-se do desproporcionado físico, em relação ao meu, perdiam e depois não pagavam. O jogo, nesse tempo, para além da Tabacaria Sereia que vendia livros usados de banda desenhada, era um dos poucos divertimentos que existiam na Praça da República.
Um dia recebi um convite do meu amigo Daniel, que trabalhava no café Tropical, para irmos à noite, depois das 23 horas, jogar à “lerpa” –jogo de cartas de fortuna e azar-, a vinte e cinco tostões a “casadela”, com um grupo de rapazes mais velhos. Entre eles estava o Henrique, que era coxo, e tinha organizado o jogo. Este rapaz, como se não levasse em conta a sua deficiência, era muito alegre e divertido, e gozava de grande respeitabilidade no grupo. Há hora marcada reunimos cerca de oito rapazes e, como benjamim, lá fui atrás deles. Fomos então jogar para um edifício abandonado, mesmo em frente e a cerca de oitenta metros da PIDE. Como não havia energia eléctrica, jogávamos à luz de velas. Pode-se, facilmente, imaginar o “cagaçal” que fará quase uma dezena de pessoas num prédio abandonado, em volta de um caixote, a jogarem cartas, à meia-noite, e com vizinhos a morarem mesmo nos prédios contíguos.
Passados um pares de horas de sermos “ocupas” do edifício, ouvimos grandes pancadas, batidas com muita força, na porta principal. Um dos do grupo foi espreitar à janela e, como mola automática descomprimida, grita: “é a polícia!”. Desata tudo a correr para o lado das traseiras, para o quintal, que dava para uma rua transversal. Alguém gritou: “encontramo-nos no Tropical!”.
Fugimos todos pelas ruas anexas e fomos então ter ao café Tropical. Quando, cansados e arfantes, contamos os fugitivos, faltava um: o Xico coxo. Pensámos logo: “estamos “lixados! Foi apanhado pela “bófia” e vai denunciar todos os nossos nomes”. Passado cerca de uma hora depois, aparece então, descontraído, o Xico. Como jornalistas em busca de título de caixa-alta, corremos todos para o “coxo”. “Então, então?”, interrogávamos em aflição. “Fui apanhado, pá!”. E deste os nossos nomes? Interrogámos em uníssono. “Claro, que querias que fizesse?”. Como andorinhas embrulhadas em desespero, fomos todos embora. Nessa noite não dormi, só me lembrava dos conselhos do Martinho. Ensimesmado, já me via a ser interrogado na esquadra da polícia e a ser apelidado na aldeia de bardino, um estoira-vergas.
No dia seguinte, à tarde, o Xico convocou uma reunião. Por entre risos de troça, o salafrário começou por explicar que por ser coxo não nos pode acompanhar no sprint para o quintal. Então deixou-se ficar dentro da casa e quando a polícia começou a correr, a rodear o edifício, calmamente, ele saíra pela porta principal. Tudo estava bem. Suspirei de alívio e pisguei-me sorrateiramente. Foi um grande susto.

sábado, 19 de julho de 2008

A CANONIZAÇÃO DE FAUSTO CORREIA



Há cerca de um mês a centenária Praça Machado de Assis, junto ao Café Trianon, em Coimbra, passou a ser chamada de Praça Fausto Correia,recentemente desaparecido do mundo dos vivos, ex-administrador da RDP, candidato à Câmara de Coimbra pelo Partido Socialista e representante do mesmo partido no Parlamento Europeu desde 2004.
Depois de imensos artigos lacrimejantes, nos jornais da cidade, alusivos à memória de Fausto Correia, falecido a 9 de Outubro de 2007, hoje foi a vez de ser homenageado pela Federação de Coimbra do PS, através de um busto em bronze.
Nos “mentideros” da Federação corre o boato à boca-cheia que, depois de tantas provas de reconhecimento sentido, de tantas lágrimas vertidas pelos outrora inimigos, e com o culminar do descerramento de hoje, “agora só falta a candidatura à Congregação Para a Causa dos Santos do Vaticano”, tendo em vista a canonização do mártir trabalhador-político-partidário, segredava, em “off”, um destacado filiado do partido ao meu amigo “Manel” Totó.
“Ó “Manel”, não divulgues, mas o processo até já está muito adiantado”, referia o partidário da rosa. “Posso garantir-te que a etapa preliminar à beatificação, a declaração da heroicidade de virtudes, foi entregue ao deputado, “cardeal”, Victor Baptista, que, cá para nós, movimenta-se muito bem nos corredores do Vaticano. Há quem diga que trata o Ratzinguer por papá (Papa em italiano). Dizem que o trata por tu. Como vês ó Totó a beatificação está no papo!”, prossegue a fonte anónima do PS.
“O Fausto era um homem probo, de uma honradez e de uma seriedade acima de qualquer suspeita, tinha um grande humanismo, um grande sentido de tolerância, de solidariedade e de justiça, a que juntava mais três qualidades políticas: a coragem, a coerência e a memória. Todas elas o impediram de atraiçoar amigos, colegas de partido e até ideais, já viste tanta qualidade humana num homem só?”, interrogava o anódino e anónimo “porta-voz” do partido do governo ao “Manel” Totó. “Está de ver que o homem era Santo, só podia,”, continua o correligionário do desaparecido eurodeputado. “E repara nem é muito difícil de provar as virtudes do Faustito, estão à vista de todos, só não vê quem não quer. Como é que tu pensas que o Pina Prata, sendo do PSD, passou para a oposição na autarquia? Ah, pois! Encolhes os ombros? Não sabes, não é?”, continua o intrépido simpatizante da rosa, “nunca davas um bom político como eu, para estas coisas da partidarite é preciso ter faro e tu não tens, mas passando à frente. Foi o Fausto, ainda era vivo, que convenceu o vereador e ex-vice-presidente da Câmara a passar-se para a oposição. Abanas a cabeça? Não acreditas em mim? Pois é! Engoliste direitinho aquela história do Encarnação, contada nos jornais, na presunção de que o Pina tinha mais ambição do que barriga. Homem de Deus, como tu és ingénuo. Foi o Fausto que o convenceu a passar-se para o lado do contra. Se reparares com atenção, nas últimas sessões de Câmara, o Pina está “possesso”, está tomado pelo espírito de Fausto, contra o Carlos da Rua das Fangas. Homem, aquilo é milagre, não tenhas dúvidas. Só não vê quem não quer!”, prossegue o homem da Rua Oliveira Matos em surdina para o “Manel” Totó.
“Queres mais? Queres? Olha, por exemplo, isto do metro de superfície, toda a gente dizia que “aquela coisa” nem um centímetro andava, que nunca iríamos ter aquele transporte. O que é que aconteceu? Veio a Coimbra a secretária dos transportes, a camarada Paula Vitorino, e, preto no branco, afirmou que até 2011 a cidade iria ser retalhada a metro. Desculpa, queria dizer que iria ser atravessada pelo metro. Ó Totó, toma lá mais esta: a quem atribuis tu esta mudança de agulha? É claro que aí anda o espírito do Fausto! Então não se vê? Sem dúvida nenhuma que é outro milagre!
Não rias escarninho ó “Manel”, que até me ofendes! Não me venhas cá dizer que esta mudança de atitude do governo, para Coimbra, tem a ver com as eleições de 2009. Nada disso! Aqui anda milagre, homem!”

QUATRO TÁBUAS ENCANTADAS



Qualquer dia, na hora de eu partir,
olhando o céu, começo a analisar,
nas estrelas vejo o tempo que gastei,
certamente, em gargalhada, vou rir,
como fui louco e não soube parar;
Uma grande parte passei a trabalhar,
tanto tempo que estive a dormir,
outra parte, só, sempre embrenhado,
preocupado no jeito de planear,
o tempo e a forma de na vida subir;
As viagens que eu sonhei,
foram ficando para trás,
perdidas, enterradas no passado,
as imagens que idealizei,
nunca concretizei, não fui capaz;
Corri mundo por um tostão,
por um cêntimo discuti,
quase andei à pancada,
teimoso, nunca admiti,
só eu queria ter razão;
Construi mundos e fundos,
na obsessão pelo ter,
vou partir desta sem nada,
com um sentimento profundo,
de que não soube viver;
Das casas que construi,
todas jazem abandonadas,
já ninguém lembra os suores,
os cansaços que eu engoli,
tanto esforço para nada;
Se pudesse voltar atrás, então,
desde os tempos de menino,
faria como o meu cão,
come e dorme, nada faz,
é tão feliz o canino!

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (19): O SENHOR ANTUNES



Quando deixei a minha aldeia em 1966 e vim trabalhar para Coimbra, para um café que, sendo na altura um ex libris na cidade, era, sem margem para dúvidas, uma espécie de santuário espiritual para os estudantes. Era, sem exagero, talvez o café de maior referência da cidade. Por ali passaram figuras gradas da política partidária de hoje, muitos professores de Direito, uns vivos outros já desaparecidos, outros de Letras e muitos escritores de renome que fazem sucesso e estão por aí, uns perdidos, outros bem salientes, nos escaparates das livrarias. Nos dias que correm, como toda a gente sabe, aquele espaço mítico, está ocupado pelo americano McDonald’s. Felizmente que deixaram o magnífico painel de azulejos de Vasco Berardo, retratando uma cena esforçada de labuta na agricultura daquela época.
Se por um lado o Mandarim tinha no seu ambiente característico, muito sui generis, prolixo e multifacetado, algo de um ambiente de Istambul, onde era visível uma certa ordem num certo caos, por outro, o seu proprietário, o senhor Antunes,
Homem, de cerca de sessenta anos, o proprietário do Mandarim, era uma pessoa respeitabilíssima por toda a gente. Pessoa boa, acessível e sempre pronto a trocar um cheque pré-datado ou mesmo a emprestar dinheiro a qualquer estudante menos endinheirado. Mas, e aqui é que reside o caso curioso, digno de ser estudado pela sociologia. Em pleno Estado Novo, com a defesa intrínseca dos valores morais e da família, o senhor Antunes, no seu pragmatismo, realizava o sonho de qualquer homem. Tinha um gosto especial, quase escandaloso para a época, não fora a sua importância estatutária na sociedade conimbricense e poderia ter sido o cabo dos trabalhos. O senhor Antunes era casado e com mulher…até aqui tudo bem e normal. O que vem a seguir é que já não é: este empresário de hotelaria tinha duas amantes, com cerca de vinte anos a menos, cada uma, em relação às suas seis décadas. Uma vivia na Rua das Flores e outra na Rua Corpo de Deus. O mais curioso, constava-se, é que as três –estou aqui a incluir a esposa-, individualmente, sabiam da existência das outras. Como faria ele para “assistir” três mulheres? Posso garantir que não havia Viagra, mas já se falava em “pau de Cabinda”, seria isso? Além de mais, poderemos até supor que o homem era uma estampa, assim do tipo, sei lá, Errol Flynn, mas, pasme-se, não era nada disso. Era uma pessoa normalíssima. Para além de ser boa pessoa, era assim para o baixote, afável, cordato e assertivo. Então que teria ele de especial para ser amado por três mulheres? Nunca se saberá, mas posso afirmar que, individualmente, as tratava com muito carinho. Eu assisti algumas vezes a essas efusões de amor, certamente, ou pelo menos, uma terna protecção.
O que ressalta é a permissão de lascívia, o tácito “mijar fora do penico”, ou melhor a omissão, por parte de agentes do Estado, uma vez que o café era , creio, frequentado por todos os agentes da PIDE. Seria por consideração? Admito que sim. Talvez pelos favores prestados. O senhor Antunes era uma boa alma. Estava sempre disponível. Creio que ajudava toda a gente, independentemente da cor da pele, da tez política ou do credo. Tanto fazia que fosse um qualquer doutor como o engraxador Raul, que tinha muitos filhos e, nessa altura, prestava serviço no Mandarim, polindo os sapatos de quem o solicitava.
É possível que fosse a consideração e o agradecimento a razão do mutismo conivente e complacente. Nessa época, os agentes e sobretudo os muitos informadores, os “bufos”, ganhavam muito mal e, pela carência financeira, recorriam a este serviço abjecto, muitos deles com plena consciência dos seus actos. Mas a família, tal como hoje, tinha de ter comer à mesa e, muitas vezes, para alimentarem os filhos tinham de recorrer aos empréstimos do senhor Antunes.