quarta-feira, 2 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (3): O MEU FORNECEDOR DE BRINQUEDOS





Como a maioria dos habitantes da aldeia, os meus pais eram muito pobres. Como quase todos, viviam de uma agricultura de subsistência. Lembro-me de o meu pai contar que o primeiro vinho que fez foi num pequeno balde de madeira. Os bens alimentares, como a batata, tubérculo essencial nesse tempo à alimentação familiar, o milho e o trigo, eram semeados em terras de arrendamento. Na nossa velha e pobre casa, onde, em dias invernosos, era preciso estar de guarda-chuva aberto para não ser atingido pelas goteiras de chuva, as grossas paredes exteriores eram em pedra, mas o interior, quase amplo, tinha umas paredes de enchaimel –técnica de construção rudimentar que consistia em revestir uma parede de madeira -nas duas únicas divisões em forma de quarto. Um dos meus pais e outro, cheio de lixo, e ocupada pela minha avó paterna, já anciã. Sei hoje, sofria da síndrome de Diógenes, que consiste na exagerada acumulação de objectos sem valor. Neste primeiro-andar, o chão era de madeira, calcorreados por uns quantos buracos enormes, por onde, através deles se podiam ver os animais no rés-do-chão e tomar a qualquer hora o odor do estrume fétido. Já se pode calcular a promiscuidade zoológica que proliferava naquela casa, onde as pulgas eram rainhas e senhoras de todo o espaço ocupado pela família.
As minhas roupas eram compradas, na feira, com vários anos de antecedência, como quem diz, tinham de acompanhar o meu crescimento. À medida que eu ia crescendo, as calças, adquiridas uns anos antes, iam sendo acrescentadas com mais uns retalhos de tecidos de outras, no comprimento, na largura, e mais uns fundilhos no rabo, ou seja, eram umas calças para a vida.
Brinquedos comprados, nem pensar! Não havia dinheiro para tais luxos. Até entrar para a escola primária, eu era produtor e consumidor ao mesmo tempo. Os carros e barcos eram feitos da casca do pinheiro (carrasca). Como é um material muito dúctil era fácil de trabalhar. Um outro brinquedo que usava era a fisga. O elemento principal era recortado de um ramo de árvore em forma de Y, e as extensões elásticas eram cortadas de uma câmara-de-ar de bicicleta. Este pequeno brinquedo, mortífero para a passarada, era o mais usado. Quando alguém me oferecia um costelo (ou costela) –uma pequena armadilha para, através de isco, apanhar aves- então lá ia para as terras em redor tentando apanhar um pássaro.
Quando entrei para a escola primária, em 1962, na Lameira de São Pedro, que distava cerca de cinco quilómetros da minha aldeia, então com 7 anos de idade, se não era o mais pobre, estaria no grupo dos mais carenciados. Como todas as crianças do lugarejo onde vivia, íamos a pé, fizesse chuva ou sol abrasador. Se a minha roupa era de indigente, o calçado não era melhor. Lembro-me de no inverno usar umas “chancas”, espécie de alpercatas com rasto de madeira, e no verão usar umas sandálias de plástico. Se a minha paupérrima forma de vestir já constituía um óbice para me sentir inferiorizado e de me auto-excluir do restante grupo de miúdos, como se fosse pouco, eu chegava à escola completamente marcado, sobretudo no pescoço, de ferroadas de pulgas. Tudo indicava “que o meu sangue era bom”, segundo o aforismo da época, talvez para desculpar o ataque descarado dos animaizinhos minimalistas. Em boa verdade, para estes, durante todas as noites, eu seria um festim gastronómico.
Como a natureza é pródiga com todos os seus filhos, comigo também o foi. Cedo verifiquei que a única forma de sair da cauda do pelotão, e de me tornar notado, era fazer das minhas fraquezas forças e, a única forma de o conseguir, era ser o melhor de entre todos na minha classe. Então estudava, estudava sem parar. E na sala de aulas dos rapazes –nesse tempo os géneros estavam separados, de um lado o masculino e do outro o feminino- eu estava sempre atento, mesmo na matéria das classes superiores. Passando a imodéstia eu era um aluno muito aplicado e sobretudo na aritmética eu dominava. A resolução de problemas era o meu forte. Então havia na minha classe um miúdo chamado Rui, mais alto do que o comum. Este puto andava sempre bem vestido e trazia sempre bons brinquedos, como por exemplo um carro de polícia, um “carocha”, que acendia e apagava e até fazia “ti-no-ni”, certamente provocando a inveja de quase toda a turma. Mas, como a natureza é boa e equitativa, normalmente faz uma distribuição e nunca dá tudo a uns, também neste caso do Rui assim aconteceu. Se, certamente por esforço dos pais, lhe davam um bom viver material, intelectualmente o rapaz não era muito esperto, até diria mais: era um pouco lerdo. Então na aritmética era uma nódoa. Daí a pedir-me ajuda para os problemas foi um passo. Estavam lançadas as sementes do negócio para a troca directa, e para eu ser empresário. Eu ajudava-o e ele em troca pagava-me em géneros. Foi assim que tive o meu primeiro carro de bombeiros e, naturalmente, o “carocha” Volkswagen da polícia. Esta história poderia ficar perfeitamente por aqui, seria um bom final, mas, calma, o epílogo vem a seguir.
Nesse tempo tínhamos aulas ao sábado de manhã. Durante a tarde ficava um grupo de quatro alunos para varrer e dar uma limpeza à sala de aulas. Numa das muitas em que me calhou, juntamente com três colegas onde estava incluído o Rui, um de nós, que não sei quem, reparou que a gaveta da secretária da professora, a Dona Odete, estava aberta. Ora, nesse tempo, as soluções dos problemas, que vinham em separata nos cadernos de Adelino Carvalho -autor de grande parte destes livros escolares- eram entregues em mão à professora, que imediatamente as arrumava na gaveta da secretária, junto ao quadro negro, para evitar que os alunos tivessem conhecimento antecipado da resolução dos problemas.
Quando um de nós reparou que a gaveta estava aberta, certamente por esquecimento da Dona Odete, foi um grito de Ipiranga, misturado com efusiva alegria: “estão aqui as soluções!”. Num ápice, estávamos todos a copiar os resultados para uma folha branca. Na semana seguinte, estranhamente para a professora, o grupo dos quatro, todos acertavam no resultado. Se três conseguiram resolver, elaborando uma solução final de acordo com a copiada na secretária, havia um aluno, o Rui, que, atamancadamente, cozinhou os resultados. Estava aberta a brecha para a descoberta do copianço. À frente de todos foi chamado ao quadro para resolver o problema. Não o soube fazer. “Como chegaste a este resultado?”, interrogou a Dona Odete já meia desconfiada, ao mesmo tempo que ia afagando e preparando a “menina dos cinco olhos” –nome dada à régua castigadora com cinco furos na ponta arredondada. Nós, os restantes três do grupo, a pedir a todos os santinhos que o Rui não se desmanchasse, mas, debalde, confessou. Foi uma orgia de reguadas para os quatro do surripianço, uma lição de que não há mentiras eternas, e uma vergonha perante os restantes alunos da classe.

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P.S.-Este texto vai ser lido por Miguel Guilherme,
no Programa "História Devida", na Antena 1, no próximo
dia 28 de Agosto, às 17,20, 21,20 e 03,20 do dia seguinte.

1 comentário:

GM disse...

E inevitavelmente, esta história lembrou-me tantas outras, contadas pelos meus pais, que ainda guardam os livros que mostram as imagens... :)
Excelente, o blog. Parabéns!