sexta-feira, 25 de julho de 2008
HISTÓRIAS SA MINHA ALDEIA (25): UM SÉCULO DE VIDA
Corria o mês de Setembro do ano de 1908, quando a aldeia de Barrô, entre a Mealhada e o Luso, foi acordada por um grito estridente de um recém-nascido. A parteira, com as mãos ensanguentadas, grita para o pai, ansioso e alagado em suores, do novo ser nascente: “é menina, é menina!”
Acabava de vir ao mundo uma mulher que nascera no mesmo ano, em que se dera o Regicídio, em Fevereiro, com a morte do Rei D. Carlos e o Príncipe Luís Filipe, constituindo este atentado o estertor de um sistema fragilizado e caduco pela ostentação de uma classe burguesa insensível, em desfavorecimento maioritário de um povo triste e sofredor. Cairia decrépito em 5 de Outubro de 1910 com a implantação da República.
Esta mulher, concebida nos planos do Regicídio, seria baptizada com o nome de Lucília Dias. Atravessou a 1ª Grande Guerra, de 1914 a 1918, e sofreu na pele, através da fome e da carência de bens alimentares, as primeiras turbulências do novo regime político republicano.
No ano de 1929, com o mundo financeiro a abanar, através do crash das bolsas mundiais e que daria origem à grande depressão, na igreja de Luso, com convicção firme, dava o “sim” a José Morais, “o homem mais pobre que havia na Vacariça” (uma aldeia próxima), segundo as suas palavras. Em 1939, quando estala a 2ª Guerra Mundial, Lucília já tinha três filhos, duas raparigas e um rapaz. Uma delas morreu precocemente de uma doença rara que não lembra.
Lucília sempre foi uma mulher de armas feitas pela sua vontade férrea e indomável. Punha as mãos ao trabalho como qualquer um ao lazer. Tanto trabalhava no campo, como em limpezas, em várias casas. Mas havia um talento que viria a marcar muita gente da freguesia de Luso: Lucília era uma boa cozinheira. Lembra-se que cozinhou em muitas casas, fez muitas festas, muitos casamentos, e até chegou a ir, durante muitos anos, no verão, em colónias de férias, do dr. Artur Navega, da Mealhada, que, através de uma mulher de Barrô, a senhora Preciosa, levava as crianças mais pobres do concelho para a praia da Figueira da Foz.
Quando estalou a Revolução de Abril em Portugal, em 1974, Lucília estava, juntamente com a sua filha Natália, a empalhar garrafas e garrafões para várias grandes Caves Vinícolas da região bairradina, como por exemplo as Caves Messias. Trabalhavam na sua oficina cerca de 24 pessoas. Hoje só a sua Natália continua, como ícone, a mostrar uma arte em total desaparecimento.
Se por um lado guarda saudades desse tempo, por outro prefere os nossos dias. “isto hoje é uma maravilha, nem vocês sabem quanto!”, atira-me à queima-roupa, no meio de um sorriso escancarado de matreirice, com um brilhozinho nos olhos, intervalado com uma palavra obscena, tão apropriadas e ditas com a mesma naturalidade com que se diz “bom-dia!”.
Mas lembrando os tempos passados, endurecendo as linhas do rosto, referindo-se ao povo da aldeia, exclama: “é uma gente de merda, mesquinha, não valem nada!”
“Vê lá bem, continua a minha querida conterrânea Lucília, com a voz embargada pela dor, que há mais de 30 anos, quando eu mudei da religião Católica para os Evangélicos, praticamente toda aldeia deixou de me falar. Desprezaram-me completamente. Passavam por mim na rua e era como se eu fosse um cão. Um dia, já o meu querido “Zé Morais tinha morrido -o meu homem-, para matar a fome aos meus filhos, fui a casa de um grande lavrador para me vender meio alqueire de milho, e sabes o que me respondeu a mulher do ricaço? Que fosse comprá-lo aos da minha religião. Somíticos de uma figa!” Exclama no meio de uma imprecação.
Continua a senhora Lucília, “mas olha, Deus não dorme –apontando com o dedo em riste para cima-, o tempo tudo cura. Acabaram todos por me virem pedir ajuda. Fui eu, sem vinganças ressabiadas, que lhes matei a fome. Acredita, dou-te a minha palavra”, profere esta frase, já no meio de um sorriso, novamente.
Pois é! Como já viram estas palavras são de uma anciã muito querida que fará no próximo dia 19 de Setembro 100 anos. Sim, um século.
Mas se vissem a sua pele do rosto, parece que tem sete décadas. A sua lucidez é impressionante. É impossível não gostar desta mulher.
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