sábado, 9 de agosto de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (30): TODOS TEMOS UMA HISTÓRIA

(A CAPELA DE VÁRZEAS)

Quando comecei a escrever estas pequenas narrações não fazia a mínima intenção de passar além da primeira. Porém, como qualquer caminhada começa no primeiro passo, tantas vezes sem termos planos para irmos além, como forças ocultas do destino, somos empurrados a continuar. Umas vezes, sem o querermos porque é impossível recuar numa “decalage” contínua, outras vezes, como no meu caso, acabamos por, quase obsessivamente, entrarmos dentro da “estória” e, como mensageiros de pessoas que em vida nos marcaram, ou porque numa pesquisa que tomou conta de nós, falamos com alguém que nos fala de outro alguém, que por sua vez o marcou imenso.
É assim que, numa conversa informal, em Várzeas, se falou do “ti” Manel sapateiro. Em anterior apontamento já falei dele e da esposa, a “ti” Maria do Céu. Eram pessoas muito boas, quer um quer outro. Mas, como eu saí daquela aldeia com mais ou menos três anos, deixando a convivência diária dos autóctones, quando lá regressava era muito acarinhado. Por isso mesmo apenas via um lado, digamos formal, das pessoas. Praticamente não as conheci no dia-a-dia.
Então, como dizia em cima, em conversa, vim a saber que o “ti” Manel sapateiro era uma pessoa extremamente divertida. Com a sua voz palheta, de cana rachada, sempre de resposta pronta na ponta da língua, este homem simples, com a sua mercearia e taberna ao cabo da mesma artéria, junto ao largo da capela, onde normalmente estava a esposa, e a sua oficina de artífice de solas e cabedais a meio da rua principal do lugar, onde residia. Como toda a gente sabia da sua simpatia e facilidade de comunicação, era normal, junto à janela do seu “metier”, juntar várias pessoas para conversar. Ele, já habituado a trabalhar com as mãos a coser e a colar alpercatas, não se deixando distrair, acompanhava qualquer conversa por entre um esticar de linha e o passar da agulha.
De vez em quando lá vinha uma patifaria, como não podia deixar de ser. A “ti” Rosa “Rata”, que morava num casebre hoje desaparecido a dois passos da capela, era muito chata e, para além disso, tinha uma aversão à água que parecia coisa má. O cheiro do estrume de qualquer curral ao pé do fedor da “ti” Rosa era um perfume de rosas, de tal maneira que quando chegava ao redor da oficina fugia tudo espavorido com a conspurcação ambiental forçada. Então um dia o sapateiro, depois de pensar no melhor meio de a afastar dali, junto à sua janela colocou uma cadeira de palha com uma sovela –pequena lança pontiaguda que servia para abrir buracos nas solas e por onde passaria a linha- disfarçada no meio do assento e virada para cima. Quando a “ti” Rosa se sentou com satisfação na cadeira e foi picada, deu um grito que abanou toda a estrutura da ponte de caminho de ferro.
Outro costume deste simpático sapateiro, que dava um fartote de rir a quem sabia, era o olhar fixamente, olhos-nos-olhos, as pessoas, sobretudo as moças casadoiras, e, num diagnóstico implacável, atirava: “menina, tu estás cheia de gaifanas!”. As miúdas, aterradas de medo pelo ar cáustico do sapateiro, interrogavam: “gaifanas? O que é isso? É grave?”. Então o “ti” Manel, com ar matreiro, puxava de um alicate e nas sobrancelhas arrancava um ou outro pelo, fazendo com que as moças gemessem de dor. Outras vezes mandava-as apanhar gambozinos. Um dia mandou a Cidália do Salgueiral, com um poceiro de vime (unidade de medida usada nos campos correspondente a cinco almudes), para a saída de água do moinho, para que ela apanhasse gambozinos. Como a água saía em folículos, a rapariga, depois de uma tarde à espera sem sucesso, saiu de lá toda encharcada. Nesse dia foi o gozo de toda a aldeia.
Para além destas pitorescas partidas, fruto da ignorância própria daquela época de 1960, havia muita dureza com as crianças mais carenciadas. Contou-me o João, o “Tripeiro”, como era conhecido na zona, que naquele tempo, em Várzeas, os lavradores mais abastados abriam grandes poços para concentrarem a água para as regas dos campos e colocavam lá peixes. Então o meu amigo “Tripeiro”, vindo da aldeia dos Moinhos, descia e juntava-se ao “Xico da Avó” e ao José “Maloio”. Como em casa rareava o necessário para satisfazer o estômago, trazia broa e sal e, juntos, nos campos, onde calhava, apanhavam umas cebolas para comerem. Tinham por costume, sempre que podiam, apanharem peixes nos poços de água. Um dia, conta o João, tinha então 10 anos, a GNR foi resgatá-lo, a sua casa, sobre prisão, aos Moinhos. A sua mãe, que mesmo pouco sabendo de leis, percebeu imediatamente que se estava a cometer uma atrocidade, não foi de meios: toca de se virar aos guardas à paulada.
Foram todos para o posto e, se quanto ao comportamento da mulher-mãe houve alguma contemplação, o mesmo não aconteceu em relação ao filho João, nem pensar. Foi apresentado ao Juiz, julgado e condenado a multa. A mãe teve de desembolsar cerca de setenta escudos. “Tempos miseráveis aqueles”, exclama o João, engelhando a cara e abanando a cabeça. Hoje, a trabalhar na Suíça e muito bem colocado, lembra estes pequenos pedaços de vida, “afinal todos temos uma história, não achas?”, interroga-me.

2 comentários:

Anónimo disse...

Então ó Luís,
Não te lembras do ti Gaudêncio de Várzeas?
Ele passava à tua porta, quando eras menininho, e perguntava: ó belhaquito, dás-me um bocado de pão?,ou, um bocadito de broa?...
e tu guinchavas fininho; NAAAAÃO! Não tenho cá NENHUUUUMA!

LUIS FERNANDES disse...

Olhe, meu caro, fiquei sem palavras! Não sabia que me conhecia. Gostei de saber. Respondendo à sua pergunta -acerca do Ti Gaudêncio-, em boa verdade retenho na memória a sua imagem, mas fugaz. Quanto às minhas expressões que refere não lembro mesmo. Mas, gostei mesmo que mo relembrasse. Fiquei contente. Palavra.
Aproveito para lhe dizer que, em princípio, tentarei publicar em livro "As memórias da minha aldeia", embora, antes disso, algumas serão publicadas no Jornal da Mealhada, onde sou colaborador.
Um abraço e obrigado por ter comentado. Fiquei contente.