sexta-feira, 12 de junho de 2009

BAIXA: O SOL DA MEIA-NOITE (2)







Quem passa naquela rua e vê as “meninas” sentadas na soleira da porta da pensão, certamente, sobretudo se for um pouco pudico, pensa para si: que diabo, isto não deveria acontecer, para mais numa grande cidade. Que promiscuidade!
Mas, imagine, apesar de indignado, você é curioso e, para mais, antes de fazer um juízo de valor, embarcando no pensamento de todos, gosta de ir ao fundo das coisas, como quem diz, faz uma viajem até ao outro lado traseiro do espelho.
Então, pede licença às meninas para entrar, repara que elas olham para si com um misto de curiosidade. Parecem interrogar: é nosso cliente, não é? Pensam para si mesmas, ao mesmo tempo que puxam a camisola mais para baixo e deixam que você atire uma “pestanada” naqueles generosos seios. Por momentos, como contabilista de manga-de-alpaca, procura calcular quantas dezenas ou centenas de pares de mãos calejadas de homens ávidos teriam apalpado aquelas protuberâncias de carne já um pouco flácida.
Começa a subir os degraus da inóspita pensão. As suas narinas começam a ser invadidas por um odor algo fétido. Repara que as paredes, a desfazerem-se em pequenas lágrimas de pó, choram de vergonha pela falta de tinta. Os degraus em madeira, sob o seu peso, rangem, como se reclamassem da sua presença. Você vai vendo que o plástico, em forma de alcatifa, se foi rasgando e criou pequenas crateras, onde o sujo do tempo, calcado por mil pés populares se entranhou de tal forma na madeira que já não se sabe se onde pisamos é a verdade ou a mentira.
No andar de cima, pára para falar com o casal, dono da pensão. Ela, africana, em cruzamento com pai português. Terá talvez cerca de cinquenta e poucos anos. Apesar de o tempo e os seus imprevistos terem deixado marcas no seu rosto, nota-se, ainda é uma mulher bem parecida. Ele, talvez com mais de setenta, parece simpático. Apercebemo-nos da sua calma. Tudo indica que foi um homem que nasceu nos negócios lá para os lados de Angola.
Você começa por lhe perguntar se haverá algum quarto vago. Foi a forma que você engendrou para a sua pequena investigação. Enquanto está a conversar com o senhor Salgado –vamos chamar-lhe assim, o apelido pouco importa- você começa a ver subir imensas pessoas que conhece de vista, que todos os dias passam por si na rua. Interroga o senhor Salgado acerca destes seus hóspedes. “vivem aqui, a maioria é a Segurança Social que paga. Outros estão aqui a dormir sem pagar há vários anos, diz o gerente da pensão. Você estranha, e interroga, e então o senhor não faz nada? “Que hei-de fazer? Eles não têm para onde ir. Se saírem daqui vão para o meio da rua! Um deve-me mais de dois mil euros. Outro mais de mil, e outros muito mais. Que hei-de fazer?” Interroga o senhor Salgado, no meio de um sorriso de complacência. “Sabe, estou cansado, se pudesse entregava isto, mas hoje não há trespasses. Tive um AVC, Acidente Vascular Cerebral, há pouco tempo. Estou muito esquecido”. Entretanto, a conversa é interrompida por um homem atarracado, que você conhece da rua. Estendendo o braço, com uma nota de dez euros na mão, o homem estica-se todo e diz: “é para abater na minha conta, senhor Salgado!”
Entretanto, enquanto vai auscultando tudo o que o rodeia, como investigador do “bas-fond” de uma rua escura e de má fama, sobe uma “menina” com um seu cliente velho. Devem conhecer-se bem. Diz ela: “já há um tempito que não te vejo, amor. Tive tantas saudades tuas!”. O velho, com mais anos de solidão do que os que constam no bilhete de identidade, sorriu. Levantou os olhos para si, como se dissesse: “eu tenho alguém que gosta de mim. Ela preocupa-se comigo!”.
Lá acertam o preço do quarto com o senhor Salgado. É um preço irrisório, pensa você para si mesmo. Mas, afinal, o carinho e a afeição, ainda que fingidos em gritos rápidos de mulher da rua, não deveriam ter preço. Sobem os dois para um andar cimeiro.
Você despede-se do senhor Salgado. Enquanto desce os degraus, um a um, vai pensando como a realidade pode extrapolar a ficção. Para estas pessoas, este lugar perdido é o último sol da meia-noite, a última fresta de luz no universo perdido da grande cidade. Tantas vezes que você passou naquela rua cinzenta com nome de poeta morto e nunca imaginou a função social daquele albergue decrépito com o “logos” de pensão. Se esta casa malcheirosa, a cair de velha, encerrasse, para onde iriam viver aqueles, muitos desabrigados sem tecto? Para onde iriam as “meninas” com os seus velhos desamparados de afecto? Iriam para um a qualquer estrada? Para um qualquer pinhal?
Enquanto transpõe a ombreira da porta, mais enriquecido por ter ido ao teatro de guerra, uma pergunta sem resposta parece ribombar no seu cérebro: por quem os sinos dobram? Será pelos vivos, será pelos mortos? Ou, pelo contrário, nem por uns, nem por outros. Dobram simplesmente pelo toque de trindades?

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