domingo, 14 de setembro de 2008

O COLECTIVISMO DE OUTRORA


EM CASA
Nas casa antigas, havia dois locais bastante importantes:

- A Lareira: local privilegiado para a família se reunir. À noite, enquanto a ceia se fazia, e depois ao serão, eram os momentos oportunos para a transmissão de histórias, experiências e saberes, que transitavam de geração em geração. Era à lareira que se combinavam as tarefas dos próximos dias.
“À volta da lareira, como se de altar se tratasse, era contada e conversada a vida, projectava-se o futuro. Contavam-se histórias, transmitiam-se ensinamentos. A lareira tinha um significado muito lato que abarcava intimidade, reunião, aconchego, sonho, fantasia, tudo se consubstanciando na liturgia do pão e do vinho e também da palavra acesa – oração comum, escola primeira, mesa e comunhão. Mesa e comunhão nas noites de inverno ou verão, onde todos, recolhidos no abraço do calor doméstico, comiam, picando com o garfo de pequenas ou grandes bacias de barro, as batatas, as hortaliças e o conduto que lhes cabia escasso – uma sardinha partida por dois ou mais, ou uns torresmos de carne de porco frita.”
- A Adega: local de convívio social onde se reuniam os amigos.
“A adega, por sua vez, pode dizer-se que era a sala de visitas do lavrador, que a outra era apenas utilizada duas ou três vezes por ano. Obrigatoriamente era pela Páscoa, abrindo-a à cruz... Voltando à adega, onde o lavrador respeitava os vizinhos e amigos, chamando-os para ‘provar as águas’ ou ‘registar a passagem’ e ao copo de vinho que era em casa do lavrador o grande acto litúrgico da amizade e da camaradagem, reconhece-se que aquele era o local onde apetecia estar...”

NA REALIZAÇÃO DE TAREFAS COLECTIVAS
“A quase inexistência de maquinaria apropriada e a escassa disponibilidade monetária para contratar jornaleiros, criaram uma funcional modalidade de permuta directa de serviços com benefícios recíprocos. Era a maneira mais rápida e eficaz de resolver pelo colectivo o que o individualismo não conseguia ou tinha muita dificuldade em fazer.”
Desta forma surgem muitas tarefas agrícolas que eram realizadas com ajuda da comunidade local:

NA MONDA E A SACHA
“A par do crescimento das searas, desenvolviam-se diversas ervas daninhas, que por Março e Abril importava retirar, pelo menos nos campos de seara de trigo.” Também as plantações de milho e feijão necessitavam de ser sachadas, para que as ervas daninhas fossem arrancadas e a terra pudesse absorver melhor a água das chuvas e das regas.
Viam-se grupos de mulheres que se deslocavam para os campos para mondar o trigo ou sachar o milho e o feijão. “Regra geral, os grupos eram numerosos e predominavam os elementos jovens, reinando a alegria expressa em cantares próprios, como estes que se registam:

Sachadores do meu milho
Sachai o meu milho bem
Não olheis para o caminho
Que a merenda já lá vem!

Minha mãe case-me cedo,
Enquanto sou rapariga,
Que o milho sachado tarde
Não dá palha nem espiga.”

NA ESCAMISADA
“Entre os serões mais apreciados e generalizados, as escamisadas do milho ocupam um lugar privilegiado.
Às desfolhadas concorriam amigos, vizinhos e familiares, bem como muitos rapazes e raparigas, que animavam o trabalho com canções, adivinhas, lendas, lengalengas e pequenos jogos.” A própria escamisada era um jogo permanente em que se procurava encontrar o maior número de espigas vermelhas (milho rei), o que lhe permitiria beijar todos os elementos do sexo oposto, ou as espigas riscadas, permitindo-lhe apenas um abraço.
No final das escamisadas era habitual fazer-se um bailarico. “Havia sempre algum rapaz que se ajeitava a tocar gaita de beiços ou concertina, instrumentos musicais que bastavam para animar o rancho.”

NA VINDIMA
“Chegado o dia, seguiam para as vinhas, de poceiros à cabeça, mulheres e raparigas, ajoujando ainda no braço direito ou esquerdo o seu cesto de aro. Com cesto de aro seguiam também as crianças que davam nesta tarefa leve e alegre a sua ajuda. Depois chegavam os carros com os cestos, as dornas, os balseiros.
Quando em vinhas contíguas se encontravam ranchos de rapazes e raparigas, havia troca de gracejos, disputava-se uma cantiga, por várias vezes vindimava-se entre rapaz e rapariga um olhar de ternura, um beijo pelo ar cheio de mosto.
A vindima era assim um trabalho leve e alegre. Tão leve que as crianças ajudavam, não sem que volta e meia os mais velhos lhes dissessem, em jeito de trocadilho, que não queriam bagos no chão e lhes contassem que uma velhinha de V(b)agos fizera um pipo de vinho.
A pisa e repisa, à noite, então à luz da candeia ou do candeeiro a petróleo, era sempre motivo de partidas e cantigas e contavam-se histórias e anedotas, se cheios os lagares. Quando a pisa era feita depois da ceia e havia vizinhos a ajudar nessa tarefa, eram-lhe servidos filhós, bom vinho, jeropiga ou simplesmente água-pé.
Também havia o costume de se formarem grupos de rapazes que, de casa em casa, faziam por noite várias repisas. Por serem amigos dos donos ou dos filhos da casa, mas, muitas vezes, levados pelo mosto de uns lindos olhos de rapariga de quem queriam obter a simpatia ou a rendição amorosa.

NO DESENTERRAR E ENTERRAR DA PEDRA DA SESTA
No dia 19 de Março (dia de S. José – dia do Pai) era usual proceder-se ao desenterrar de um enorme pedregulho, que só voltaria a ser enterrado no dia 8 de Setembro. “Trata-se de um ritual que associa a sesta, o S. José e vestígios de um provável culto da pedra.” Neste dia, os trabalhadores do campo juntavam-se no cruzamento da Venda Nova - Luso, para desenterrarem, alegremente, a “pedra da sesta”, era uma maneira de verem reduzido o seu horário de trabalho (de sol a sol) e poderem fazer um intervalo para dar descanso ao corpo. Começava assim o início da sesta.
“Quando o ritual havia já provavelmente desaparecido, começou a festejar-se o dia de S. José, o que ainda hoje acontece embora no segundo domingo de Julho, dado terem-se deslocado os festejos para o verão, no intuito de beneficiarem de melhores condições atmosféricas e da presença de emigrantes.”


NA MATANÇA DO PORCO
“A matança do porco era, efectivamente, um acto de grande importância social, feito por alturas de Janeiro ou já em Dezembro, todos os anos e em quase todas as casas. A matança tinha o seu cerimonial próprio, as suas particularidades etnográficas... Pode dizer-se que era um dia de festa. Toda a família dedicava esse dia a esse acto, que tinha os seus gestos próprios e os seus preparativos. Se não havia homens em casa em quantidade suficiente, pelo menos três, eram convidados familiares ou pessoas vizinhas, de boas relações e melhor amizade, e o matador a quem chamavam magarefe... De resto nesses dias, o dono da casa fazia questão de chamar o familiar, o vizinho ou o amigo passante, para levá-lo à adega, dar-lhe um copo (era dia de festa desde manhã cedo) e mostrar-lhe o porco. Também era costume os vizinhos e amigos juntarem-se para ir, diziam, “por a água benta no porco” de fulano ou sicrano. E, se na vizinhança havia mais matanças, iam de casa em casa. O lavrador escancarava-lhes as portas da rua e da adega.


NA MALHA, NA PODA, NA EMPA, NA FIAÇÃO, NA APANHA DA AZEITONA, ETC.
Em todos estes trabalhos era possível constatar a inter-ajuda, entre amigos e vizinhos, para a realização de longas tarefas, onde só o grande número de pessoas conseguia resolver.

Nalgumas comunidades do interior, podemos ainda constatar a existência do “Boi do Povo”, do “Forno do Povo”, da “Eira do Povo”, entre outras formas de manifestação comunitária.


NO JOGO E NO TRABALHO
“As antigas ocupações laborais do mundo rural, situadas em torno da pastorícia e do ciclo de trabalhos de preparação, sementeira, colheita e armazenamento dos produtos agrícolas eram, muitas vezes, interrompidas por jogos diversos ou coexistiam mesmo com folguedos e diversões.”

NA PARTICIPAÇÃO COLECTIVA EM ACTOS RELIGIOSOS E PROFANOS
Num misto de religiosidade e superstição o povo agia colectivamente. Ainda que dispersos, ao toque das avé-marias, de manhã, ao meio-dia e ao cair da noite, “quando soavam as três badaladas nas torres das igrejas, os trabalhadores onde quer que estivessem, tiravam o seu chapéu, encostavam-se ao cabo da enxada, se andavam nas sementeiras ou nas cavas; mandavam parar as juntas de bois, se andavam nas lavras e, assim descobertos, de chapéu na mão, semeadas de calos, rezavam por momentos.”

Em actos religiosos como, ir à missa, ao terço, à via-sacra, às novenas, aos sermões, verificava-se grande afluência de pessoas, representando a comunidade.

Também para a realização de obras nas Capelas e Igrejas, as pessoas se organizavam, fazendo Cortejos de Oferendas, com o sentido de angariar fundos.

Criaram-se Irmandades, para acompanhar os defuntos no dia da sua morte e mandar rezar missas por alma destes.
Procedia-se ao Cantar das Almas, para arranjar dinheiro para dizer missas por alma desses entes queridos.

As pessoas agrupavam-se para Cantar os Reis ou As Janeiras, para Deitar Pulhas, para A Serração da Velha, entre outros usos e costumes.

Uma ocasião muito especial para se agruparem em grande número, eram as Festas e Romarias. Era ver os ranchos de pessoas que partiam em grupo a caminho da Romaria: Almas Santas da Areosa, S. Amaro, S. Brás, S.to António do Cântaro e a nossa Romaria por Excelência – Romaria da Ascensão ao Buçaco.

Bibliografia:
J. Freg. de Luso - J. Turismo de Luso - Buçaco - LUSO NO TEMPO E NA HISTÓTRIA - 1987
Rodrigues, José - O COUTO DE AGUIM - Junta de Freguesia de Aguim - 2.ª edição - 1977
Carvalho, António Breda – MEALHADA A ESCRITA DO TEMPO - 1977
Mota, Armor Pires - OLIVEIRA DO BAIRRO - CHÃO DE MEMÓRIAS - USOS E COSTUMES - 1996
Faria, António - MEMÓRIAS DA MOITA - 2003
Pimenta, Osvaldo de Melo – IDEAL DE UMA VIDA – MANUEL DE MELO PIMENTA - 1987
Marcelo, Lopes – MOINHOS DA BASÁGUEDA – 2000
Gouveia, Henrique Coutinho – SISTEMAS DE MOAGEM DO CONCELHO DE PENACOVA – 1999
Serra, Mário Cameira – O JOGO E O TRABALHO - 2001
Revista AQUA NATIVA – N.º 9 Dezembro 1995 – Associação Cultural de Anadia
Fontes, António Lourenço – ETNOGRAFIA TRANSMONTANA, vol. I e vol. II - 1974
Arquivo de recolhas do Grupo Folclórico “As Tricanas” da Vila de Luso

2 comentários:

LUIS FERNANDES disse...

Seja (re)bem-vindo. E logo com um post de arreganhar a beiça. Muito bom, sem favor. Li aqui coisas que até já me tinha esquecido. Ainda bem que há "tradicionalistas" como o senhor e impedem que a memória se perca, já que quem o deveria fazer, por direito, não o faz. Enfim, é a política de (des)cultura que temos.

André Melo disse...

Grande regresso Alcides!
Infelizmente "O Colectivismo de Outrora" na nossa terra não chegou aos nossos tempos e assistimos a uma fraca capacidade associativa e de agremiação(também com grande culpa minha!)! Felizmente surgem as "honrosas excepções" das quais é um exemplo! Certamente vou encontra-lo, o mais tardar, no 27 de Setembro em mais uma actividade da sua Associação!
Um grande abraço!