terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
CHEGOU O REI SOL
Hoje, ainda que timidamente, o sol, dividido em mil braços, como que em acto de contrição por não ter dado sinal de vida nos últimos dois meses, parecia querer abraçar toda a gente que passava na Praça 8 de Maio. E as pessoas, que não são rancorosas, um pouco numa defesa inibidora, iam deixando cair as suas máscaras de guerreiros preparadas para a guerra e, perante aquela humildade do astro-rei, abriam os seus semblantes e, aqui e ali, via-se um sorriso de contentamento. Pareciam meninos traquinas a quem deram um “bijout” como prémio de bom comportamento.
Em frente à Câmara Municipal o engraxador, depois de muitos dias de jejum, já ia na terceira “polidela” aos sapatos meios esbranquiçados pelo castigo sofrido durante dias a fio de chuva ininterrupta.
Os bancos de pedra em frente à autarquia, como senado onde os aposentados da vida e rendidos à morte próxima ratificam ou desaprovam as medidas políticas tomadas ali ao lado e que, devido às condições atmosféricas, nos últimos meses não têm reunido por falta de quórum, com o bom tempo a prometer, tudo indicava que o conclave estaria repleto dentro de poucas horas.
Há porta da Igreja de Santa Cruz o sacristão olhava o céu e, como em prece sentida, parecia agradecer a Deus o resultado de tantas promessas rogadas.
Sentados no parapeito do lago sem ser lago, um grupo de romenos estabelece estratégias para um dia de pedincha que se aproxima. As pombas no seu picar despreocupado, misturando-se por entre pernas e alheias a quem passa apressado, pareciam mensageiras anunciadoras de uma primavera que tarda mas virá.
À porta do Café Santa Cruz, o Costa, o homem dos sete ofícios, cujo principal é pintor de artes plásticas e nas horas vagas é funcionário do majestático café, parece enfrentar os raios solares de olhos semi-cerrados. Só ele sabe que naquela fonte de luz, como bateria descarregada, está a receber a força anímica que lhe permite harmonizar a vida sonhada e a vida possível.
No canto direito, uma loja comercial em liquidação, com o nome de “El Cavalo”, símbolo da determinação e da nobreza, mesmo diante da força revitalizadora da natureza, parece desistir de lutar e vai claudicar.
Junto à rampa, para a Rua Visconde da Luz, o homem das castanhas, mesmo sabendo que já vai longe o São Martinho, como missão, continua a espalhar o cheiro em forma de desejo a brasas e o odor do fruto do castanheiro. Ele sabe, ele sente, que desaparecendo o seu pequeno carro quase artesanal a cidade perde o último cheiro que lhe resta antes de ficar asséptica e sem identidade olfactiva. Enquanto faz mais um cartuxo de uma folha de lista telefónica, como que a embrulhar os números da mesma forma que fazem os políticos que nos governam, pensa, com saudade, no tempo em que cada rua da Baixa era conhecida pelo seu cheiro original. Por exemplo, há cerca de uma vintena e meia de anos, a Rua Direita tinha um cheiro a mofo e a bafio que se tornava entorpecente. Era uma espécie de fronteira entre o amor e o ódio, em que a razão repele e a emoção abraça.
A Rua da Louça, assim como outras artérias confluentes, com várias tascas, era conhecida pelo odor a bifanas a fritar com alho e louro, sardinha em pasta e joaquinzinhos a saltar. O seu cheiro era tão intenso e agradável que ao inalarmo-lo ficávamos como “hipnotizados” pelas narinas e, inevitavelmente, tínhamos de entrar na tasca.
A Rua do Corvo, para além de várias lojas de tecidos a metro, tinha um grande armazém de mercearias ao fundo e, a meio da rua, uma grande mercearia aberta ao público. Era o Mendes & Companhia. Ao passarmos na sua proximidade, como odor de flores silvestres amazónicas, éramos absorvidos pelo intenso cheiro a café moído Arábica.
Outras Ruas tinham outros cheiros característicos, desde o perfume de flores até ao cheiro da fruta madura.
Pensa o homem das castanhas que, numa obsessiva defesa da limpeza alimentar nos estabelecimentos -até entendível, porque necessários- a verdade é que os centros históricos perderam parte da sua identidade, algo que, para além de os tornar familiares, os tornava incomuns. Hoje, sem os odores –e também sem os vários pregões associados a vários vendedores-, estas zonas monumentais parecem ter perdido a alma, o espírito que as mantinha vivas nos nossos sentidos.
“Queria uma dúzia de castanhas. Senhooor?! …Queria uma dúzia de castanhas”, insiste, em rogo, uma senhora, acompanhada do marido, ao “adormecido” vendedor septuagenário que tinha os olhos presos na memória.
“Ai, desculpe, estava distraído, foi este sol de inverno que me desconcentrou”, lamentou-se em mil palavras o homem do carro-mota.
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