segunda-feira, 30 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (1): O TOINO DA LOJA


(O ESTABELECIMENTO DO SENHOR ANTÓNIO SIMÕES, EM BARRÔ)


Corria o ano de 1960, tinha eu então 4 anos, quando fui morar com os meus pais para uma pequena aldeola entre a Mealhada e o Luso. Era uma aldeia igual a tantas outras do Portugal pobre, esconso e atrasado desse tempo. Tinha uma riqueza natural que embora a tornasse diferente, directamente não lhe trazia grandes benesses: o seu barro cinzento de elevada qualidade, extraído das entranhas da terra por potentes caterpillars, que diariamente iam rasgando as encostas à volta da povoação. Este barro invulgar deu o nome à aldeia. Era de uma maleabilidade invulgar, lindo e de mil cores, onde predominava o cinzento, que dava gosto apertar entre os dedos. Esta argila alimentava duas fábricas cerâmicas –hoje encerradas e em ruínas- de telha e tijolo, ao cimo do lugar. Pouco influía no marasmo económico desta pequena localidade intrinsecamente rural, para além de dar alguns escassos empregos aos autóctones.
Por entre um casario pobre, onde a única manifestação de vida era um fio ténue de fumo saído das chaminés, a meio do lugar, como baluarte entre um homem ambicioso e um Deus desinteressado e misericordioso, ficava a capela, que normalmente só era aberta no dia da festa anual, em honra do mártir S. Sebastião, ou então quando morria alguém. Era aqui, no largo, que os muitos putos, a “cachopada”, numa algazarra infernal, jogavam ao pião, ao botão e ao lencinho. Mais ao cimo, seguindo em caminho de terra batida, sulcados pelos camiões de transporte de barro, a “venda” do “Senhor António da loja”. Em grau de importância estatutária, a seguir aos quatro maiores lavradores latifundiários que davam emprego no amanho da terra à maioria da população, o comerciante de vinhos e mercearias vinha a seguir. Desde os fósforos, ao arroz, ao açúcar amarelo, até ao papel de fantasia recortado para colocar nas cantareiras da cozinha, tudo era inscrito no grande livro de débitos. Entre o “deve” e o “haver”, cuja primeira coluna era extensa, estava ali a história do lugarejo. O senhor António, para além de bom amanuense, era respeitado pela sua idoneidade e sobretudo pela obrigatória concessão de crédito popular. Com o tempo, com a mudança dos costumes e melhor distribuição da riqueza, estabelecimento e homem, como gémeos siameses, foram perdendo importância. Praticamente, o primeiro só subsiste pelo amor e apego do segundo. Este, o companheiro e dono, hoje é simplesmente conhecido pelo “Toino da loja”. Alto, de bom porte, cabelo penteado à Errol Flynn, ninguém lhe dá a idade que tem realmente. O seu rosto, quase sem rugas, divido entre um ar de menino e a necessária contenção de um sorriso, não vá um rasgado riso parecer e dar azo a um abuso de confiança por parte do cliente. Falar com este septuagenário é um gosto. De memória fresca, lembra-se de toda a história da aldeia, nos últimos 50 anos. Relembra os idos anos 50, quando, e apesar de estar estabelecido numa aldeia rural e essencialmente vinícola, num mês, na sua taberna, chegava a vender 25 almudes de vinho (500 litros), contra apenas uma grade de cerveja. Era sobretudo ao Domingo que este consumo era feito. Em frente à sua loja, na rua principal, logo a seguir ao almoço, começavam a aparecer os grandes campeões, e também adversários, da malha ou fito como também era conhecido este jogo na aldeia. Quando chovia passavam para o interior, e, em volta de um pipo voltado ao contrário, guerreavam-se numa cartada, no jogo da sueca. Relembra a sã camaradagem de alguns jogadores já falecidos, o “Zé Grande”, o Daniel “Carteiro”, o “Toino dos Ovos”-este ainda vivo, felizmente-, o Albino “Cantoneiro”, o Daniel “Catrixo”, entre outros.
Nesse tempo, a loja do senhor António era uma espécie de montra tecnológica implantada numa terra profundamente mecânica. Era lá que se ouviam as notícias na telefonia. Foi lá que se viu a primeira caixa que viria a revolucionar o mundo, a televisão. Por volta de 1957, poucos meses passados da primeira emissão da RTP, desde a Feira Popular de Lisboa, em 1956, o senhor António ao passar na Praça Velha, em Coimbra, reparou num grande magote de pessoas em frente a uma montra de electrodomésticos. Aproximando-se, reparou que todos olhavam para a caixa mágica. Com um elevado faro para o negócio, imediatamente viu ali uma oportunidade. No dia seguinte, a televisão entrava oficialmente em Barrô pela mão do senhor António. Foi colocada nas traseiras do estabelecimento, num armazém rudimentar. Colocou umas tábuas de pinho corridas e pronto!, estava inaugurado o primeiro animatógrafo da aldeia, contra o pagamento de cinco tostões.
Hoje, o “Toino da loja”, como é conhecido com carinho, olha em volta e, embrenhado numa saudade que quase é palpável, o que vê é o casario em ruínas, muitas delas com placa de “vendo”. Já quase não ouve um galo a cantar, um boi a mugir, um porco a grunhir, nem o balir das muitas ovelhas de outrora. Já não há crianças no largo da capela, o que há é uns poucos velhos sorumbáticos, carregados de tristeza, encostados às esquinas. O silêncio como manto diáfano, translúcido, tomou conta da aldeia.

2 comentários:

André Melo disse...

Fico à espera de mais participações suas e de mais participantes da nossa freguesia!
Já começa a valer a pena ter andado aqui sozinho tanto tempo(sem desprimor para o Canas)!

Juventude Construtiva disse...

NOVO POST EM:

jconstrutivamealhada.blogspot.com

CONFIANÇA!