quinta-feira, 17 de julho de 2008

HISTÓRIA DA MINHA ALDEIA (17): OS MEUS SAPATOS DE LUVA

(COMO CERTAMENTE JÁ VIRAM ESTE HOMEM NÃO É O SENHOR "XICO", MAS APENAS UMA IMAGEM DE UMA ARTE QUE SE ESFUMA NO MAR DA MODERNIDADE)

Ainda não contei, mas os meus primeiros sapatos, as primeiras calças de vinco “terylene”, a primeira camisa de colarinhos “tv”, assim chamada na época de 1960, e um pequeno pulôver, tive-os apenas, pela primeira vez, quando, com 10 anos, fui fazer o exame da quarta classe. Esta mesma roupa serviu depois para a comunhão, celebrada logo a seguir, assim como para entrar, um mês depois, então ainda com 10 anos, no mercado de trabalho.
Lembro-me de, uma semana antes do exame, a minha mãe ter ido ao Luso, à loja do senhor Adelino Carvalho, comprar estes “luxos”. Acreditem, não exagero ao classificá-los assim. Para quem nunca tivera uma “farda” daquele gabarito, quem sempre usara calças remendadas e umas “chancas” no inverno e umas sandálias de plástico no verão, aquilo era mesmo um luxo indescritível. Nos dias antecedentes do exame, mal os meus pais viravam costas, aí ia eu a correr vestir aquelas roupas à pressa, a deleitar-me e, certamente, naqueles momentos fugazes de felicidade extrema, a imaginar-me, por entre todos os mais pobres da aldeia, o menino mais rico e mais sortudo. A sorte que eu tinha! Parecia mesmo um senhor, todo aperaltado, daqueles do pequeno ecrã, que, até aí, só vira na televisão, na “venda” do senhor António Simões.
Veio o dia do exame, que fiz durante a manhã. Mal cheguei a Barrô, almocei à pressa e fui colocar-me, sentado, de perna traçada, no patim do Largo da Capela, para que toda a gente da aldeia visse como eu estava vestido. Estive lá sentado até ao anoitecer.
Uma semana depois, creio, celebrei a comunhão e logo a seguir, em 1966, vim trabalhar para Coimbra. Enquanto esta roupa durou chamei-lhe um figo. Depois, como não havia dinheiro, passei a usar roupa usada. Roupa nova, de marca, contentava-me em vê-la nos outros. Os sapatos que calçava até ficarem rotos eram dos mais baratos que havia, custavam cerca de 80$00.
Lembro-me que o meu maior sonho, na altura, era ter umas calças de ganga LOIS, uma camiseta LACOSTE, e uns sapatos de luva. Porém, havia um senão. Cada uma destas peças custava à volta de 250$00. Como eu ganhava exactamente essa quantia, que ia inteirinha para o meu pai, facilmente se notará que eu estava tão longe de ter um destes ícones da moda, como quase ir à lua. Então, um dia, eu mandara pôr meias solas nuns dos tais sapatos baratuchos no senhor “Xico”, sapateiro, à entrada da Rua Tenente Valadim. Acontece que, sem eu compreender o porquê, o senhor Francisco nunca mais mos entregava. Passados cerca de dois meses, fui então à sua oficina perguntar pelos sapatos. O sapateiro, meio atarantado, não se lembrava do meu calçado, então vira-se para mim e diz:” engraçado, não me lembro nada de mos teres entregado. Vê aqui se os reconheces”. Em frente a mim estava uma longa prateleira com todos, todos, os sapatos já prontos. Conseguem adivinhar quais os sapatos que escolhi? Pois claro…uns de luva, é óbvio! Mas havia um pequeno senão, ao calçá-los, estavam apertadíssimos, mas não foi por isso que não andei orgulhosamente com eles.
Durante meses, enquanto duraram, mesmo magoando-me os pés, eles foram o encanto dos meus dias e o meu sonho tornado realidade.
Quanto às tão ambicionadas calças de ganga Lois e camiseta Lacoste, só viria a tê-las pela primeira vez, creio, já com 16 anos, quando fui trabalhar para uma casa comercial de pronto-a-vestir.
Ainda hoje, curiosamente, as calças de ganga são as minhas eleitas e uso sempre sapatos de luva. Comprar uma Lacoste, para mim, é algo de místico, qualquer coisa que me transcende, é como fazer uma viagem a um recanto paradisíaco que é só meu. Estou preso ao passado? Dirá você, leitor. Se calhar, é o mais provável. Afinal, não será verdade que somos um resultado, nunca acabado, de um continuum que começou no berço?

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