domingo, 20 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (20): A LERPA

(A LERPA É UM JOGO QUE SE PRATICA COM TRÊS CARTAS)

Quando acabei a escola primária, em 1966, na minha aldeia, em Barrô, entre a Mealhada e o Luso, escrevi uma carta a um meu tio que trabalhava em Coimbra, como cozinheiro, para que me arranjasse emprego. Passados poucos dias recebi uma missiva a dar-me conta de que tinha trabalho. Nesse dia, não cabia de contente. Finalmente ia ver-me livre daquela terra, daquele ambiente que julgava miserável e causador de tanto sofrimento que sentia. Claro que a aldeia não tinha culpa do meu pai me obrigar a trabalhar todos os dias, Domingos e feriados, e até de noite. Durante a semana, mal finalizava as aulas, tinha de ir logo a correr para casa, para ir apanhar, através de ceifa, dois molhos de erva. Raramente tinha tempo para brincar com as outras crianças. Muitas vezes, de noite, o meu pai obrigava-me a ir com ele regar a leira do Barreiro. A água, provinda da represa –onde, muitas vezes no verão, servia de piscina comunitária aos mais novos e onde o cantar, em forma de serenata, dos ralos e o coaxar das rãs era música celestial para os meus ouvidos- era atribuída por sorteio, de modo que poderia perfeitamente calhar às três horas da manhã. E o meu pai, imbuído de um sentido de dever educacional, de que um filho só aprendia a trabalhar, trabalhando, e desde pequenino, não perdoava. Era do trabalho que tudo vinha, resmungava, amiúde, quando eu, recalcitrante, tentava pisgar-me.
Perante a minha atracção pela cama, às vezes bufava como toiro enraivecido, lamentando trabalhar que nem um galego, que o seu pai não lhe deixara nada, e, entre apodos de calaceiro e malandro, retrucava sem parar: “dormes muito, nunca há-des ser nada na vida”. Ao longo da minha ainda curta existência, tantas vezes repetiu esta frase que, se por um lado me irritava solenemente, por outro, desencadeou em mim uma espécie de desafio. Para dentro de mim, pensava: um dia hei-de provar-lhe que se enganou. É curioso, com toda a honestidade, acho que, enquanto viveu, passei a vida toda a querer provar-lhe que estava enganado. Ainda hoje consigo sentir o efeito daquelas palavras como o silvar de um chicote.
Está bem leitor, eu sei que, como sempre, fugi ao tema, mas já irei retomar sem mais demoras. Dizia eu, então, que tinha recebido a carta do meu tio a prometer-me emprego e fiquei esfusiante de alegria. Por coincidência, nesse dia, o meu pai recebeu a visita de um amigo, o senhor Martinho, homem de grande saber, que falava pelos cotovelos, de farta bigodaça, como vassoura de piassaba, um grande chefe de mesas, de Várzeas, e, é claro, corri a dar-lhe a novidade: vinha trabalhar para Coimbra. Perante aquela grande notícia, o nosso amigo não enjeitou a oportunidade de me dar uns conselhos morais em pacote: “nunca sejas refilão, faz sempre o que te mandarem sem reclamar; se acaso te perguntarem se tu sabes fazer bem uma determinada coisa, mesmo que saibas bem, nunca digas que sabes; nunca te metas em jogos, o jogo desgraça mais que as mulheres; no mínimo deves estar um ano por um qualquer emprego por onde passes, caso contrário, vão achar, por aqui, que és um estafermo de um mandrião”.
Vim então para Coimbra, para a Praça da República. A minha principal preocupação era que no mínimo deveria estar um ano no primeiro emprego –curiosamente estive lá quase seis anos. Trabalhava de manha até à noite. Embora tivesse duas horas de intervalo e um dia de folga. Essas horas de lazer eram passadas nos bilhares do ACM, Associação Cristã da Mocidade, e nos bilhares do Fontes, do café Moçambique. Como passava lá o tempo, apesar de puto, tornei-me um bom jogador de Snooker, onde me confrontava com outros muito mais velhos do que eu a jogar a dinheiro, à “seguidinha”. Alguns deles, lembro-me, valendo-se do desproporcionado físico, em relação ao meu, perdiam e depois não pagavam. O jogo, nesse tempo, para além da Tabacaria Sereia que vendia livros usados de banda desenhada, era um dos poucos divertimentos que existiam na Praça da República.
Um dia recebi um convite do meu amigo Daniel, que trabalhava no café Tropical, para irmos à noite, depois das 23 horas, jogar à “lerpa” –jogo de cartas de fortuna e azar-, a vinte e cinco tostões a “casadela”, com um grupo de rapazes mais velhos. Entre eles estava o Henrique, que era coxo, e tinha organizado o jogo. Este rapaz, como se não levasse em conta a sua deficiência, era muito alegre e divertido, e gozava de grande respeitabilidade no grupo. Há hora marcada reunimos cerca de oito rapazes e, como benjamim, lá fui atrás deles. Fomos então jogar para um edifício abandonado, mesmo em frente e a cerca de oitenta metros da PIDE. Como não havia energia eléctrica, jogávamos à luz de velas. Pode-se, facilmente, imaginar o “cagaçal” que fará quase uma dezena de pessoas num prédio abandonado, em volta de um caixote, a jogarem cartas, à meia-noite, e com vizinhos a morarem mesmo nos prédios contíguos.
Passados um pares de horas de sermos “ocupas” do edifício, ouvimos grandes pancadas, batidas com muita força, na porta principal. Um dos do grupo foi espreitar à janela e, como mola automática descomprimida, grita: “é a polícia!”. Desata tudo a correr para o lado das traseiras, para o quintal, que dava para uma rua transversal. Alguém gritou: “encontramo-nos no Tropical!”.
Fugimos todos pelas ruas anexas e fomos então ter ao café Tropical. Quando, cansados e arfantes, contamos os fugitivos, faltava um: o Xico coxo. Pensámos logo: “estamos “lixados! Foi apanhado pela “bófia” e vai denunciar todos os nossos nomes”. Passado cerca de uma hora depois, aparece então, descontraído, o Xico. Como jornalistas em busca de título de caixa-alta, corremos todos para o “coxo”. “Então, então?”, interrogávamos em aflição. “Fui apanhado, pá!”. E deste os nossos nomes? Interrogámos em uníssono. “Claro, que querias que fizesse?”. Como andorinhas embrulhadas em desespero, fomos todos embora. Nessa noite não dormi, só me lembrava dos conselhos do Martinho. Ensimesmado, já me via a ser interrogado na esquadra da polícia e a ser apelidado na aldeia de bardino, um estoira-vergas.
No dia seguinte, à tarde, o Xico convocou uma reunião. Por entre risos de troça, o salafrário começou por explicar que por ser coxo não nos pode acompanhar no sprint para o quintal. Então deixou-se ficar dentro da casa e quando a polícia começou a correr, a rodear o edifício, calmamente, ele saíra pela porta principal. Tudo estava bem. Suspirei de alívio e pisguei-me sorrateiramente. Foi um grande susto.

1 comentário:

Anónimo disse...

keres explicar como s joga á lerpa ?!ou contar a historia da tua vida ?????és pior q as velhas ca do bairro ....esconde t pah ....