sexta-feira, 18 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (18): O SENHOR DOUTOR

(O "Taxeira", figura sui generis de Coimbra,já desaparecido, que teve direito a figurar numa Rua)
(O Daniel "Tatonas", figura típica de Coimbra, já falecido)
(Este rapaz em cima do leão, presumivelmente desaparafusado, continua hoje, na cidade, a pedir "uma moeda senhor dótor")

Quando, mal acabei a escola primária, em 1966, vim trabalhar para Coimbra, para um café que exaustivamente referi, o saudoso Mandarim, era costume, na cidade, sobretudo na hotelaria, tratar toda a gente por doutor. Qualquer bicho-careta de brilhantina no cabelo, mesmo que estivesse sebento, uma gravata por cima de uma coçada camisa e estava feito um doutor. Talvez esse recalcado tratamento explique em parte essa mesma deferência, ainda hoje, usada e abusada na cidade. O que é curioso é que há sempre dois abusadores o que trata o outro por “doutor” e o presunçoso que, obrigatoriamente, se faz reconhecer com tal distinção.
Pode parecer confuso, mas vou explicar melhor. Por exemplo, hoje, é muito natural ser abordado na Baixa, por pelo menos um demente, que, para chamar a sua atenção, empregará o vocativo “ó senhor “dótor”, dê-me uma moedinha”. E isto, não se pense, não é nada novo. Já nos anos 70, do século passado, havia na cidade dois cromos, onde a senilidade imperava, que usavam o mesmo método de introdução à moeda: o Daniel “tatonas” e o Raul dos Reis Carvalheira, mais conhecido como “Taxeira”, figura típica coimbrã que, não sei bem em que critérios assentou, mas é nome de rua na cidade dos estudantes. Penso que já é visível onde queria chegar. Ou seja, o “senhor doutor” é usado como alavanca para quem quer obter algo em troca sem grande esforço e através de um encómio que pouco custa soletrar. A quem o profere exige-se muito pouco (que é sempre compensatório) e quem o recebe, numa viagem supersónica, sobe ao pódio e desfaz-se em generosas subtilezas.
É um abuso perpetrado por aqueles que obrigam outros nesta deferência, porque, como é óbvio, sendo apenas licenciado –o que hoje em dia felizmente é a maioria- pretende alcançar um status, um estatuto de importância que não tem. O que é curioso, quanto a mim, é este jogo de luzes difusas. Ambos sabem que se estão a enganar mutuamente, no entanto tudo rola lindamente nesta Coimbra de tradição, onde o que interessa é o que parece e não realmente aquilo que se é. Mas, se isto é cultura, ainda que discutível, está tudo dito. Tal como a religião e a política partidária, cultura, mesmo que seja abjecta, sendo uso e costume, não se discute e pronto!
Bom, mas com tudo isto, quase esqueci a minha pequena história, mas, sem mais delongas, vamos a ela que se faz tarde.
No pequeno balcão da pastelaria, o senhor Mendes era o chefe supremo daquele pequeno principado. Fazia tudo para me ensinar, a cuidar dos pastéis, a expor as caixas de bombons, como só ele sabia fazer e, sobretudo o trato com os clientes, essa era a sua principal preocupação. “não te esqueças, sempre que vejas um senhor de capa e batina ou vestido de fato e gravata, diriges-lhe, obrigatoriamente, sempre com trato especial: “faz favor de dizer, senhor doutor?”.
E assim fazia, até que um dia, um homem bem posto e todo "apessoado", de fato e gravata, chega ao balcão, e eu, naturalmente: faz favor de dizer, senhor doutor?...”ó rapaz…estás a gozar comigo…ó quê? Eu sou o motorista do doutor Pais Ribeiro! Não me chames nomes…ouviste? –reclama irritado e aos berros o homem

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