quarta-feira, 23 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (23): AS FÁBULAS DO MEU TIO MANEL

(A SECULAR CAPELA E O LARGO EM VÁRZEAS -foto retirada, com a devida vénia, do blogue "Adelo.Blogspot.com)

Todos nós, dos tempos da nossa infância, recordamos sempre alguém, que pode ser chegado, familiarmente ou não. É naqueles momentos de nostalgia, como se viajássemos no tempo, que de repente lá vem a imagem desse ente tão especial, que, durante o tempo da nossa meninice, povoou e encantou a nossa recente vida.
Na parte que me toca, lembro-me de vários tios que foram a alavanca de partida para um futuro de trabalho que se avizinhava. Por agora, vou apenas falar de dois, muito especiais para mim.
Viviam em Várzeas, uma pequena aldeia mesmo juntinho ao Luso, pegadinha como paredes-meias. Embora irmãos, eram antagónicos na forma de viver a vida. E, do seu feitio tão contrário de ser, só posso entender como sendo atribuído aos genes cromossomáticos. Um, hereditariamente, saiu ao pai –o meu avô Crispim-, outro, geneticamente, veio a ser bafejado com o lado bondoso e puro da mãe –a minha avó Madalena.
Este, o que veio a adquirir por parentesco o lado maternal, puro e bom, era o meu tio Albertino. Com o seu ar simples, transpirando sobriedade, seriedade e serenidade. Ao longo da vida, estou em crer que nunca teria enganado ninguém. Mesmo se alguma vez o quisesse, os seus traços de genuíno homem recto tê-lo-iam traído e não teria conseguido passar a perna a ninguém. O normal era ele, dentro da sua encantadora ingenuidade, ser facilmente passado na cantilena de um qualquer burlão barato. Nasceu pobre e, na sua aceitação de vida, pobre morreu.
Lembro-me muito bem deste meu tio. Ele, por volta dos anos de 1960, era fogueiro (colocava as aparas de madeira para queimar numa grande caldeira de combustão) numa serração que existia, por esta altura, junto aos Refrigerantes Buçaco e à estação ferroviária de Luso. Muitas vezes fui vê-lo trabalhar naquele ambiente de calor infra-humano. Como era juntinho à estação, e sempre que passava um comboio, volta e meia, ouvíamos um estridente grito, que quase estoirava os tímpanos de quem por ali andasse. Era a senhora Rosalina, que vivia nos Moinhos, um lugar ali próximo, e vendia umas encantadoras bilhas de água, chamadas “pichorras”, por vinte e cinco tostões: “Águuaa dee Luusssooo!
O outro familiar, que certamente herdou o carácter do pai, era o meu tio “Manel”. Este homem, um efabulador de histórias mirabolantes, foi de todos, para mim, o “must”, o meu modelo recalcado de uma memória que nunca esquecerei, o paradigma da saudade. É difícil de descrever este sentimento, mas, para mim, recordar este tempo, é como quando necessitamos de acalmia espiritual e imaginamos um vale coberto de erva verde e um riacho de águas límpidas a correr. Assim recordo este meu tio, sentado no adro da capela, com o seu sorriso fácil, entre a matreirice e a conveniência. O seu sorriso era como a sua alma materializada no seu rosto. Era tão normal tê-lo impregnado na sua cara que, para mim, era impossível dissociá-los, como se, ao nascer, em vez de chorar, trouxesse estampado no rosto aquele riso fantástico. Mentia, ou teatralizava, com uma facilidade de fazer inveja ao melhor actor do nosso Teatro Nacional D. Maria II. Quem não o conhecesse, jamais diria que ele fantasiava. Não sei se era a fantasia que, duma forma natural, se lhe colava, se era ele, duma forma fascinante, como num sonho de menino, vivia autênticas megalomanias.
Sendo ele muito pobre, era como se, desta maneira, tentasse trocar as voltas ao destino. Mentia tão naturalmente que, em qualquer situação, era como se estivesse lá e fosse mesmo o personagem principal, apesar de saber que tudo aquilo que descrevia com mestria e uma convicção inexcedível e ao pormenor era falso.
Quando eu chegava ao pé dele fazia sempre a pergunta sacramental: então ó tio como é que estamos de vacas? “Ó rapaz, são muitas, cada vez tenho mais. Ainda agora comprei três mil. Se calhar tenho de adquirir outra quinta. Não sabes quem queira vender uma?”. Interrogava-me ele, de ar sério, perante o meu semblante compenetrado.
Então e pessoal para trabalhar, você arranja? Já deve ter um exército, imagino, interrogava-o e tentando a minha melhor performance.
´´Oh, oh. São milhares! São tantos que, calcula que quando estão todos sentados para comer, numa extensíssima mesa de quilómetros, se for batatas com bacalhau, anda um funcionário de patins, em cima dela, com um grande regador (de 10 litros) a temperar a comida”.

Sem comentários: