(A CAPELA DE BARRÔ, EM HONRA DO MÁRTIR SÃO SEBASTIÃO)
Quando comecei a escrever o primeiro texto, a que apelidei de “histórias da minha aldeia”, estava longe de pensar que ao desbravar o meu lado cerebral escondido, dos meus tempos de menino, iria começar a descobrir recordações em catadupa. Por outro lado, à medida que vou percorrendo o passado, como se entrasse num labirinto difuso, quase como se fizesse psicanálise das pessoas da minha aldeia, numa espécie de exame psico-sociológico, de repente dou por mim a chegar a uma conclusão fatídica. Comecei a contar as pessoas que se suicidaram nos últimos 50 anos, pelo menos que tenho conhecimento, e o número é extraordinariamente grande para um lugarejo que nunca teve mais de seis dezenas de pessoas. Ou seja, nas últimas cinco décadas suicidaram-se cerca de 15 pessoas. Um número percentual exacerbadamente grande para tão poucos habitantes.
Então, numa espécie de catarse social, olhando para trás, começo a ver a tristeza que enferma aquela minha terra. Mentalmente percorro todas as pessoas já falecidas, outras em fim de vida, e mesmo, ainda que não conheça em profundidade, esta última geração, a soma de todas as premissas é realmente de uma grande tristeza, como um fado que cada um carrega nos seus ombros. E quando falo deles, obviamente que olho para mim também. Conhecendo-me como conheço, oscilando entre a nostalgia e uma angústia permanente, ainda que dissimulada –é no escrever que ela se revela-, mais facilmente chego à análise social que pretendo.
A minha aldeia foi sempre um lugar tristonho. Na década de 1950 até 1970, exceptuando meia dúzia de habitantes que já citei em apontamentos anteriores, em que os denominava de campeões da malha e da sueca, e que habitualmente se divertiam todos os domingos à tarde, frente à “venda” do senhor António, a maioria, pobres, como disse também, trabalhavam de sol a sol, todos os dias da semana, incluindo o domingo. E aqui não posso deixar de me lembrar de um acontecimento que me marcou profundamente. Quando fiz exame da 4ª classe –nesse tempo era assim-, em 1965, na Mealhada, fui sozinho, isto é, acompanhado dos restantes colegas, mas sem os meus pais que tinham ido trabalhar para o campo. Já os meus companheiros, por ser uma data importante, foram com os progenitores. Tal facto não me causou estranheza. Porém, no mesmo mês de Julho, em Luso, fui fazer a comunhão solene…também sozinho. Os meus pais, mais uma vez tinham ido trabalhar para a agricultura. Eu parecia ignorar tal facto, mesmo vendo os outros acompanhados de todos os parentes. Mas, eis que de repente se dá um clique. Uma senhora da aldeia, a Dona Isabel, cujo filho também celebrava aquela festa religiosa, olhando para mim com comiseração, interroga-me: “onde estão os teus pais?”. Eu respondi: foram trabalhar . “FORAM TRABALHAR, HOJE?”. Curioso, passados mais de quarenta anos consigo ouvir ainda aquele grito como o silvar de um chicote, de admiração mas também de revolta. Aquele grito foi importante para mim, ao longo da minha vida, os meus filhos nunca estiveram sós numa data importante para eles que eu não estivesse lá, mesmo que chegasse atrasado.
Olhando para as famílias mais abastadas, relembro que todas tinham um ar sofrido, ainda que algumas mostrassem serenidade. Era como se tivessem passado um período traumatizante, que de certo modo passaram mesmo, se tivermos em conta a 2ª Guerra Mundial, com todas as suas consequências, nomeadamente o racionamento de víveres. Não sei se esse grande conflito bélico pode ou não explicar a grande tristeza das pessoas da época e que, através dos genes, naturalmente passaram para os vindouros. Mas, não era só isso, quase todas tinham um ar somítico. Lembro-me de uma família abastada, sem filhos, em que a mulher, já então viúva e septuagenária, bebia o leite azedo e comia todos os restos que tivessem sobrado de outras refeições. Tudo estaria bem se ela não quisesse obrigar os empregados a seguirem-lhe o (mau) exemplo. Quando morreu, há menos de vinte anos, deixou aos sobrinhos quase vinte mil contos (100mil euros) e várias dezenas de propriedades. E agora um facto relevante. Depois da sua morte foram encontradas notas do Banco de Portugal escondidas que já tinham passado de validade. Foram cerca de quinze mil euros. Explicaria a guerra este comportamento? Penso que não. Era a estupidez simples no seu maior grau de pureza.
Lembro-me também que as pessoas da minha aldeia nunca foram muito solidárias. Talvez a rigidez do rosto, pelas dificuldades da vida, expliquem ou não a falta de comparticipação e ajuda social entre os seus membros.
Já o disse antes, o povo de Barrô nunca foi muito religioso, embora esta carência de “religare” não implique necessariamente a falta de sensibilidade social. Uma pessoa pode ser boa sem frequentar a religião. A bondade como sentimento puro, é uma emoção imanente que vem de dentro para fora. Já a bondade “imposta” pela religião, pelo temor a Deus, é de fora para dentro, é aquela “caridadezinha” calculista que torna o homem num fraco, como falava Nietzsche.
sábado, 5 de julho de 2008
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