sábado, 19 de julho de 2008
HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (19): O SENHOR ANTUNES
Quando deixei a minha aldeia em 1966 e vim trabalhar para Coimbra, para um café que, sendo na altura um ex libris na cidade, era, sem margem para dúvidas, uma espécie de santuário espiritual para os estudantes. Era, sem exagero, talvez o café de maior referência da cidade. Por ali passaram figuras gradas da política partidária de hoje, muitos professores de Direito, uns vivos outros já desaparecidos, outros de Letras e muitos escritores de renome que fazem sucesso e estão por aí, uns perdidos, outros bem salientes, nos escaparates das livrarias. Nos dias que correm, como toda a gente sabe, aquele espaço mítico, está ocupado pelo americano McDonald’s. Felizmente que deixaram o magnífico painel de azulejos de Vasco Berardo, retratando uma cena esforçada de labuta na agricultura daquela época.
Se por um lado o Mandarim tinha no seu ambiente característico, muito sui generis, prolixo e multifacetado, algo de um ambiente de Istambul, onde era visível uma certa ordem num certo caos, por outro, o seu proprietário, o senhor Antunes,
Homem, de cerca de sessenta anos, o proprietário do Mandarim, era uma pessoa respeitabilíssima por toda a gente. Pessoa boa, acessível e sempre pronto a trocar um cheque pré-datado ou mesmo a emprestar dinheiro a qualquer estudante menos endinheirado. Mas, e aqui é que reside o caso curioso, digno de ser estudado pela sociologia. Em pleno Estado Novo, com a defesa intrínseca dos valores morais e da família, o senhor Antunes, no seu pragmatismo, realizava o sonho de qualquer homem. Tinha um gosto especial, quase escandaloso para a época, não fora a sua importância estatutária na sociedade conimbricense e poderia ter sido o cabo dos trabalhos. O senhor Antunes era casado e com mulher…até aqui tudo bem e normal. O que vem a seguir é que já não é: este empresário de hotelaria tinha duas amantes, com cerca de vinte anos a menos, cada uma, em relação às suas seis décadas. Uma vivia na Rua das Flores e outra na Rua Corpo de Deus. O mais curioso, constava-se, é que as três –estou aqui a incluir a esposa-, individualmente, sabiam da existência das outras. Como faria ele para “assistir” três mulheres? Posso garantir que não havia Viagra, mas já se falava em “pau de Cabinda”, seria isso? Além de mais, poderemos até supor que o homem era uma estampa, assim do tipo, sei lá, Errol Flynn, mas, pasme-se, não era nada disso. Era uma pessoa normalíssima. Para além de ser boa pessoa, era assim para o baixote, afável, cordato e assertivo. Então que teria ele de especial para ser amado por três mulheres? Nunca se saberá, mas posso afirmar que, individualmente, as tratava com muito carinho. Eu assisti algumas vezes a essas efusões de amor, certamente, ou pelo menos, uma terna protecção.
O que ressalta é a permissão de lascívia, o tácito “mijar fora do penico”, ou melhor a omissão, por parte de agentes do Estado, uma vez que o café era , creio, frequentado por todos os agentes da PIDE. Seria por consideração? Admito que sim. Talvez pelos favores prestados. O senhor Antunes era uma boa alma. Estava sempre disponível. Creio que ajudava toda a gente, independentemente da cor da pele, da tez política ou do credo. Tanto fazia que fosse um qualquer doutor como o engraxador Raul, que tinha muitos filhos e, nessa altura, prestava serviço no Mandarim, polindo os sapatos de quem o solicitava.
É possível que fosse a consideração e o agradecimento a razão do mutismo conivente e complacente. Nessa época, os agentes e sobretudo os muitos informadores, os “bufos”, ganhavam muito mal e, pela carência financeira, recorriam a este serviço abjecto, muitos deles com plena consciência dos seus actos. Mas a família, tal como hoje, tinha de ter comer à mesa e, muitas vezes, para alimentarem os filhos tinham de recorrer aos empréstimos do senhor Antunes.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário