terça-feira, 15 de julho de 2008
HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (15): CHEGADA A COIMBRA
(Um aspecto de Coimbra por volta dos anos de 1960)
Corria o ano da graça de 1966 e tinha acabado de concluir o exame da quarta classe. Estava então com dez anos, prestes a comemorar os onze. Como tinha um tio que era cozinheiro num restaurante em Coimbra, escrevera-lhe a solicitar um emprego. Como os meus pais eram agricultores muito pobres, inevitavelmente, eu precisava de trabalhar, mas também porque tinha absoluta necessidade de me ver livre das lides do campo, que detestava. Já me bastava não ter nem domingos nem feriados de folga, assim como, diariamente, depois de vir da escola, ter de ir cortar dois molhos de erva para os gados, ovelhas, cabras e um boi de terça – já o contei aqui, em anterior apontamento, a terça era um contrato bilateral -nesta época normalmente implementado na agricultura- estabelecido verbalmente entre duas ou mais pessoas, em que o investidor colocava um animal de grande porte (boi ou Vaca) no segundo contraente. Este, usando o animal para trabalhos campestres, comprometia-se a engordar o animal e, mais tarde, aquando da venda, a diferença remanescente ( valor acrescentado), entre o valor inicial e o valor final, seria dividido em três partes iguais. Sendo duas partes para o investidor, dono do animal e uma para o segundo contraente que houvera contribuído, através da engorda, para esse lucro.
Como o meu tio respondera positivamente ao meu pedido, passado uma semana entrava, pela primeira vez, na grande cidade mítica, a Coimbra do imaginário indígena, a Coimbra dos doutores, cantada em fado, aquém e além-mar. Mas também, diga-se, à custa da sua Académica, com os seus grandes jogadores, como Rui Rodrigues, Curado, Rocha, Belo, Néné (que viria a morrer num acidente de automóvel) e tantos outros que, pelo seu elevado talento de equipa, treinados por Mário Wilson, faziam frente ao grande Benfica, do pantera negra, ainda mais notabilizado pelo campeonato europeu. Eram célebres os derbies entre estes dois grandes clubes nacionais.
De saco de pano na mão, lembro-me de ter chegado, na companhia do meu tio, à Praça 8 de Maio e ter ficado extasiado com todo aquele movimento de pessoas junto á Igreja de Santa Cruz, mesmo apesar de ser Agosto, mês de canícula e deslocação a banhos, dos mais endinheirados para Figueira. Os velhos eléctricos amarelos, atravessando o canal (Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz), com o seu característico barulho ronceiro, provocado pelo atrito do ferro a arrastar no ferro, andavam permanentemente cheios. Na parte de trás, no gancho de engate, era comum ver vários putos pendurados, tentando não pagar bilhete, para desespero do “pica” (cobrador de bilhetes). Esta praça, mais parecendo um delta confluente de vários rios, como um entreposto comercial do oriente, o barulho era ensurdecedor. Era o cauteleiro, no seu pregão, tentando desencadear a ambição: “Sábado anda a roda…é a última…quem quer estes quinhentos contos?”. Mesmo ao lado, dois ardinas com as suas sacas de ganga azul cheia de jornais, um matulão gritava: “é o Primeiro de Janeiro…traz as últimas”. Junto a este um garoto, sensivelmente da minha idade, descalço e com as calças remendadas pelo meio das pernas, mostrava a resistência daquele vestuário ao seu crescimento. Era notório que enquanto ele foi crescendo, as calças foram minguando e, assim, foram transitando de um ano para os outros. O puto gritava a plenos pulmões, com a sua voz de cana rachada: “é o Calinas…compre o Calinas…é o Jornal dos doutores”. Ali à volta, ouvia-se uma mistura indescritível de vozes desafinadas e pregões bem estudados, era a peixeira, era a vendedeira de hortaliças, com a sua canastra à cabeça. Em frente da Igreja, uma fila de táxis esperavam pelos clientes e um taxista mais afoito, encostado ao seu carro verde e preto, escutava com atenção o “vendedor de banha da cobra” e ia vendo, com admiração, as dezenas de pessoas que se iam juntando em torno do vendedor de pomadas e elixires:”comprem a pomada milagrosa para o pai e o catraio, cura reumatismo, artroses e bicos de papagaio”.
No canto esquerdo, junto à farmácia Universal, uma cigana, na sua lengalenga, pegava na mão de uma mulher de meia-idade e dizia-lhe, com a voz em corrupio, uma mistura de português “arromenado”, de que a senhora sofria de amores aziagos, maus-olhados e mal de inveja. No lado contrário os irmãos Secos não tinham mãos a medir a venderem tabacos e café moído. No Café Santa Cruz, nessa altura, restaurante, um empregado, bem aprumado “à paquete”, de casaco branco vestido, ia espalhando as toalhas e os guardanapos de tecido branco imaculado, para servir os almoços que a hora do repasto aproximava-se a passos largos.
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