domingo, 13 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (13): O BARBEIRO

(CLARO QUE JÁ VIRAM QUE ESTE NÃO É O BARBEIRO DE QUEM FALO COM ÊNFASE)

Vou falar de uma profissão que, nos anos de 1950, era na minha aldeia de Barrô, ali, entre a Mealhada e o Luso, muito mais do que simplesmente um “metier”. Aquele cubículo do meu amigo “Zé barbeiro”, ainda hoje existente, como museu vivo, lutando contra o tempo, em forma de “consultório” podia, sem favor, ser tudo. Tão depressa era um santuário, onde se expressavam preces, se faziam confissões e se planeavam casamentos, como, por milagre, virava uma “casa do soalheiro”, onde se dizia mal de tudo o que mexia e de todos. Era ali que se sabiam as novidades. O “Zé” Maria, o “técnico-barbeiro”, era (e é) um bom homem. Mesmo sem conhecer uma única letra, a vida dura ensinou-o a ser assertivo e diplomata. Como Deus, leal e omnipresente, que apenas tem ouvidos, habituou-se a escutar, e, sem se comprometer, ao longo de décadas de profissão –que nestas coisas de feitios de homens, mudam-se os tempos, mas as vontades continuam firmes no “cortar a casaca” de alguém-, sempre foi acompanhando as conversas de modo a que o cliente sentisse que participava na história. Ele sempre soube colocar-se no seu lugar de ocasião, que um bom barbeiro para além de ser exímio na sua arte, deve ser conselheiro, padre, psicólogo, pai, de qualquer filho de mãe, e tantas vezes filho, se o freguês, sendo pai, mesmo que seja incógnito, é muito mais velho do que ele.
Começou por aprender a arte de escanhoar com o José Rodrigues. Não se lembram dele, pois não? É natural, já passou muito tempo! Este grande mestre, vinha de Várzeas, uma aldeia amorosa, mesmo encostada ao Luso, que dista cerca de oito quilómetros de Barrô, se fosse a direito, em direcção ao sítio da Lapa do Sino, por entre veredas e carreiros minúsculos de cabras, emoldurados por silvas e tojos, que só os sendeiros conheciam. O mestre vinha a pé, com a sua pequena maleta de cartão prensado e lá dentro com todos os apetrechos necessários a uma boa tosquiadela aos pelos de qualquer um. Ia a casa das pessoas desempenhar o seu ofício. Bastava uma cadeira e tanto podia ser na sala, na cozinha, como na adega. Normalmente, aos mais ricos, era aqui, rodeado de pipas, com cheiro a vinho-mosto, molhado de uma boa pinga e acompanhado de umas fatias de presunto, que se tentava o impossível, ou seja, alindar um feio rosto de nascença.
O Zé Maria, tinha então vinte anos, por volta de 1950, quando fundou a sua barbearia. Uma novidade na época. Onde não faltava o espelho e a cadeira de trono, esse luxo, para o freguês, que quando não palrava, passava pelas brasas: o assento de ferro fundido, estufada a napa, de António Pessoa. Um orgulho que na época lhe custou os olhos da cara.
Ainda hoje, passados mais de cinquenta anos, consegue sentir o prazer de amarrar, no pescoço do freguês, aquele grande avental branco, que cheirava a lavadinho, torcido e espremido nas águas correntes do rio, e corada na encosta granítica sobranceira ao moinho de água, que lá nessas coisas a Augusta, a sua mais-que-tudo, o amor da sua vida, nunca permitiu uma toalha suja no pescoço de ninguém. Nesse tempo, pagavam muito mal –os que pagavam, porque, mesmo assim, alguns ferravam-lhe o calote-, vejam bem que a anualidade era um alqueire de milho –não se lembra que medida era esta? O Zé Maria explica que era uma unidade de medida de capacidade para secos e líquidos que variava entre 13 e 22 litros. Com este pagamento o freguês tinha direito a cortar o cabelo quando necessitasse e a escanhoar a barba uma vez por semana.
Como a coisa começou a não render, não dava a gota para a perdigota, por volta dos anos 70, o meu amigo barbeiro alterou o contrato bilateral verbal que tinha com os seus fregueses. Em vez de receber em géneros, passou a ser pago a dinheiro. Então, segundo a tabela afixada, uma barba custava dez tostões e, em conjunto, de cabelo e barba, passou a custar vinte e cinco tostões. Então aconteceu uma coisa engraçada, sem graça para o meu amigo Zé, quando era pago com milho os fregueses andavam sempre lá a aparar a lã, como começou a ser pago com dinheiro só lá iam já com o cabelo enorme. Quando ele lhes perguntava a razão de tamanha ausência a resposta era igual: “sabes que agora usa-se o cabelo grande, como os Beatles, é moda, e nestas coisas, temos de seguir as tendências vindas do estrangeiro, percebes?!” Claro que o Zé Maria percebia, e de que maneira.

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