sábado, 12 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (12): O SENHOR CABRAL

(A CASA DO SENHOR CABRAL, HOJE DEMOLIDA, ERA AO LADO DESTA, ONDE SE VÊ O PORTÃO DE CHAPA ZINCADA)

Quando eu era miúdo, no início dos anos de 1960, na minha aldeia, havia um senhor abastado que sempre me provocou uma profunda curiosidade. Parece que estou a vê-lo, era um homem pequenino, de uma quase ínfima estatura. De cabelo penteado para trás, sempre muito bem vestido. Quando caminhava, com os seus passos elegantes, parecia deslizar em campo magnético e precisão metódica como escala musical. Comparando a imagem deste habitante, desaparecido há várias décadas, de Barrô, com alguém que possamos reter na memória, como retrato de simplicidade, vem-me à ideia, quase como colagem, tanto física, como anímica, Gandhi, líder pacifista indiano (1869-1940), que, pela resistência passiva, levou aquela ex-colónia britânica, à independência.
O que sempre me admirou era a extrema deferência, quase adoração mística, que o povo da aldeia reservava ao senhor Cabral. Quando qualquer pessoa o encontrava na rua, tinha para com ele o mesmo tratamento que se tinha para com o senhor vigário. Constantes vénias e os olhos presos ao chão, como se, pela sua santidade de imponência, qualquer simples mortal não tivesse o direito de olhar, olhos-nos-olhos, aquele ser sem mácula e sem pecado. Este homem, conjuntamente com a esposa, a dona Estefânia, mais conhecida como “Faninha”, era idolatrado como ser extraterreno. Em boa verdade, se esse facto constituía, para mim, algo pouco comum, por outro lado atribuía este comportamento reverencial como próprio de uma sociedade atrasada e quase feudal.
Quando comecei a escrever estes pequenos textos, pensei, logo no inicio, que um dos temas que trataria seria inevitavelmente a vida deste homem pequeno na estatura, mas, sei agora, tal como o Mahatma Gandhi, uma grande alma. E o mais curioso também é que ao tomar conhecimento do comportamento sui generis desta família abastada, veio mandar por terra uma já teoria pré-formada, consolidada na minha cabeça, e usual nesse tempo, de que todos os homens ricos da aldeia eram somíticos, safardanas, uns trastes que, pela ignorância e pobreza, sempre que podiam, se aproveitavam dos mais carenciados, através de subterfúgios, envolvendo pequenos empréstimos a juros, para os deixar de tanga e ficar com mais algumas propriedades e, deste modo, acrescentarem mais umas leiras ao seu império a perder de vista no horizonte.
Então, o que tinha este homem de especial? Interroga-se você, leitor. Vamos com calma que já lá chego. Começo por lhe dizer que o senhor Cabral foi guarda-livros, muitos anos, nos refrigerantes Buçaco -já encerrados há cerca 30 anos-, ao lado da estação ferroviária do Luso. Segundo informações que consegui, dava injecções a quem necessitasse e sem nada levar em troca. Para além disso, foi também presidente da Junta de Freguesia de Luso. Parece que, também, num período de transição, foi presidente da Câmara da Mealhada. Foi também neste período que mandou alcatroar a estrada principal da aldeia, desde o Muro de Troncho, junto à estrada Mealhada-Luso, até ao centro do lugar. Olhando este currículo, aparentemente, está explicada a reverência do povo por este homem. Pois, parece, mas só ilusoriamente. O respeito que as pessoas pobres da povoação lhe guardavam provinha, sem dúvida nenhuma, do grau de protecção e segurança que o seu status projectava nelas, em virtude do seu estatuto político, mas, e é aqui, creio, que reside toda a idolatria quase mística por este personagem: o senhor Cabral, para além de deter poder de influência e ser um abastado proprietário, era uma pessoa bondosa e de elevada humanidade.
Durante o ano matava três porcos. Um deles era para distribuir pelos mais pobres do lugarejo. Como era costume nessa época, sempre que morria alguém na povoação, o senhor Cabral, na noite de vigília ao defunto, mandava entregar comer já confeccionado para que a família enlutada, nessa noite, não tivesse de fazer refeições e, em paz, pudessem sofrer a sua dor. Normalmente a ementa era composta por caldo de arroz e batatas cozidas com bacalhau. Como era co-proprietário dum grande lagar de azeite, que existia junto ao rio, a oeste da população, a caminho do sítio do Barrocão, mandava distribuir o precioso néctar da oliveira pelos mais carenciados.
O povo agradecido, dentro das suas parcas possibilidades, ressarcia-o com pequenos encómios. Por exemplo, sempre que uma família pobre matava o seu porquito, era costume, nesse dia, colocar dentro de um prato, coberto com um guardanapo de pano, um bocado de carne e iam entregar ao senhor Cabral e à senhora Faninha. Outro grau de deferência também engraçado: sempre que um membro de uma família mais carenciada se casava, as primeiras pessoas a serem convidadas eram a família Cabral.
Como morreu sem filhos, veio a fazer metade da sua extensa fortuna à sua criada, a Arminda que veio a contrair matrimónio com o capataz, o Álvaro e no qual tiveram dois filhos. A outra metade foi testada ao primogénito destes seus outrora criados, o António, pessoa que o senhor Cabral e a senhora Faninha amavam como um filho seu.

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