(FOTO DE PAULO ABRANTES)
Seriam cerca de 11,30 da manhã. Eu estava deitado na areia, com o mar à minha frente, em lençol de azul celeste estendido quase até aos meus pés. Embora distendido em toda a minha descontracção, os meus olhos, naturalmente, para além de abraçarem a linha do horizonte, onde de vez em quando se perfilava uma traineira, mesmo sem o querer, perscrutavam tudo o que se passava à minha volta.
Comecei por ouvir a sua voz cristalina, dirigindo-se a outros grupos de banhistas, que, relaxados, como eu, livres dos problemas do dia-a-dia, apenas motivados em gozar o momento em toda a sua plenitude, com o barulho das ondas, enrolando-se na areia beje-acastanhada, pouco estavam interessados em ladainhas místicas: “Bom dia meus irmãos, podem escutar-me um pouco?”, interrogava, em apelo sentido, a mulher de cerca de sessenta e poucos anos, com cabelos brancos bem cuidados pelos ombros, de boné branco, à marinheiro, t-shirt cor de laranja e saia a meia altura. Pendurados ao pescoço, três terços. Na mão direita uma cartolina em dimensões de folha A4, de cor azul-céu, com uma cruz desenhada a preto, e na base a palavra “DOZULÈ”. Na mão esquerda um terço médio com uma cruz saliente, que, à medida que ia falando, balouçava.
Reparei como as pessoas, umas a seguir às outras, todas despachavam a mulher como se ela tivesse incubado um vírus mortal. Mas, para minha admiração, como predestinada, ela não desistia e passava a outro grupo. À medida que se aproximava comecei a desejar ansiosamente que ela parasse ao pé de mim. Que motivação extraordinária poderia levar aquela mulher a percorrer, de lés-a-lés, a praia da Figueira da Foz?
Eu sempre tive uma atracção fatal por pessoas invulgares, que se salientem no quotidiano. Como jornalista em busca da notícia, sempre que posso, procuro falar com estas pessoas. O que os move? Porque agem desta ou daquela maneira? Tenho de confessar que adoro estes “cromos”. Para mim, são arte viva interactiva. Pode, aparentemente, não ser consensual, mas se levarmos em conta que “arte” será toda a manifestação artística que provoca os nossos sentidos, neste caso, então tem lógica o que defendo. Para além disso, há várias décadas, li a entrevista de um grande advogado francês que defendia que, nas cidades, os loucos, os pedintes e até os pequenos assaltantes (do furto ligeiro) eram a quebra na rotina. Eram estes personagens que impediam que tudo fosse formatado de uma forma igual. Considerava que estes “outsiders” eram uma quebra no continuum do quotidiano.
Voltando à senhora da praia, reparei que ao soarem as doze badaladas na igreja de Buarcos a mulher soergueu-se, perfilou-se, juntou as mãos erguidas ao céu, e durante escassos minutos rezou uma oração. Passado pouco tempo estava junto a mim, a interrogar-me: “Boa tarde, meu irmão, queres escutar-me um bocadinho?”. À minha anuência não manifestou surpresa. Como se as imensas “tampas” que apanhara até aí nada significassem, ou se tiveram impacto foi para a empurrarem para a frente com mais força ainda.
Aos poucos, discretamente, sem ser muito incisivo, fui fazendo as minhas perguntas acerca da sua motivação para, naquela hora de imensa canícula, percorrer a praia, como mensageira de fé a pagar uma promessa.
“Tudo começou há cerca de dez anos atrás. Ia a sair da Igreja de Santa Cruz, em Coimbra, quando dei de “caras” com as três irmãs, que à entrada do templo entregavam uma mensagem de Cristo. Foi como se tivesse recebido a luz de Deus. Naquele momento eu transformei-me. Tornei-me noutra pessoa melhor. Então, a partir daí, eu rogava ao Pai porque não falava Ele comigo? Passados tempos comecei a sonhar e, nesses sonhos, eu trocava impressões com Ele. Ele disse-me:”Espalha a minha palavra!”, prossegue a minha entrevistada.
“Então é o que faço. Espalho a palavra do Senhor! Este mundo está perdido, ninguém leva a sério a palavra de Deus. Vão todos pagar fortemente. O fim está próximo!”.
Quando lhe pergunto se tem tido sucesso em converter pessoas, e, nomeadamente o seu companheiro é católico? Responde a senhora da areia: “eu espalho a palavra, quem quer houve, quem não quer não houve. As pessoas são muito más. O que mais me custou, aqui na Figueira, há uns anos, foram dois casos. Num deles, dirigi-me a uma mulher, perguntei se me podia escutar, e ela, furibunda respondeu-me em altos gritos: “Vá para a puta que a pariu sua fanática de merda, se eu tivesse aqui um pau enfiava-lho num sítio que eu cá sei!”.
Noutro caso, foi um homem, há pouco tempo, insultou-me que ainda hoje me sinto ferida: “Olhe vá para o “carvalho”, vá lavar louça, vá coser meias, sua vendilhona do templo!”, continua a mulher a responder-me.
“Quanto ao meu companheiro, é o meu calcanhar de Aquiles, não consigo convertê-lo. Está aposentado da função pública. Mas também pouco me importa, nós fazemos uma troca: ele sem ser religioso, precisa do meu lado espiritual e eu preciso do dinheiro dele.
Despediu-se com um “até sempre meu irmão, ainda bem que há pessoas de fé como tu”. Entrega-me um panfleto com uma oração, acompanhado de uma recomendação: “não destruas esta mensagem de Deus. Amanhã tira várias cópias e, quando passares numa qualquer rua, coloca-as, uma a uma, debaixo das portas. Nunca nas caixas de correio, que, agora, por causa da publicidade, ninguém lê a palavra do Senhor. Ouviste bem, meu irmão?!”
segunda-feira, 21 de julho de 2008
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