quinta-feira, 3 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (4): A MINHA MUSA ENCANTADA


(A CASA DO SENHOR LINO, EM BARRÔ)


No início dos anos de 1960, dum grupo de quatro, o maior lavrador da minha aldeia, Barrô, era sem dúvida nenhuma o senhor Lino. Para além das suas imensas terras agrícolas, que se perdiam no horizonte, e em que dava trabalho a muitos habitantes do lugar, incluindo o meu pai, ele era também negociante de bois. Comprava, vendia e dava de “terça” –negócio jurídico, hoje caído em desuso, que consistia na compra de um animal por um primeiro contraente que o colocava num segundo para engorda e que, posteriormente, seria vendido. O lucro –a diferença entre o custo inicial e a venda final- seriam dois terços para o investidor, o primeiro contraente, e um terço para o segundo, aquele que efectuou a engorda. Aparentemente, parece que o segundo faria um mau negócio. Mas só aparentemente. Isto porque o segundo, sem investimento, para além do lucro de um terço, adquiria acessoriamente força de trabalho através do animal, que seria empregue na lavoura.
Para além da agricultura, da compra e venda de gado e da “terça”, o senhor Lino tinha ainda várias vacas que produziam leite. Era a sua casa que fornecia e aleitava toda a aldeia. Era vendido ao litro para os pobres da povoação. Habitualmente, este líquido branco, segregado pelas glândulas mamárias das fêmeas dos bois, era pago com trabalho, como acontecia com o meu pai. Passados quarenta e cinco anos, consigo reter o sabor aveludado, daquele meio litro de leite quente que eu todos os dias ia buscar, e transportava, num pequeno fervedor de alumínio. Consigo ainda sentir a espuma quente a brincar com a ponta do meu nariz e colar-se no meu buço. Apesar da esposa do senhor Lino, a Dona Justina, ser muito generosa –uma senhora calma, de longas saias negras, obesa, de faces rosadas e com uns olhos lindos que transmitiam paz e serenidade- e encher acima da medida, quando chegava a casa dos meus pais estava muito abaixo porque bebia várias goladas.
Adorava ir, à noite, buscar o leite àquela grande casa agrícola. Tinha dois motivos muito fortes. Um, era o entrar naquela grande cozinha, ver as chamas a crepitar através da porta onde se inseria a lenha no grande fogão de ferro, sempre aceso, fosse verão ou inverno, onde cozinhavam para a família e para os animais, sobretudo os muitos porcos. Aquele laboratório pantagruélico, pelo odor a hortaliças fermentadas, pelo imenso e abastado fumeiro na chaminé, simbolizava a fartura de alimentos que eu não possuía na minha casa paterna.
A segunda razão que me empurrava para a casa daquele abastado lavrador era o “sol da minha vida”, a sua filha mais nova, a Cidália. Esta rapariga, um pouco mais velha do que eu, era, na altura, uma criança linda, de longas tranças, uma tranquilidade no rosto, complementada com uns olhos lindos, com toda a certeza herdados de sua mãe. Nós ainda éramos de laços consanguíneos próximos. Só que, apesar disso, embora familiarmente perto, na classe social estávamos distantes a anos-luz. Ela era a filha do homem mais rico da aldeia e eu primogénito de uma das mais pobres famílias do lugar. Ao pé dela eu sentia-me intimidado. Lembro-me claramente de um dia, junto à sua casa, jogar ao lencinho com um grupo de miúdos onde ela estava inserida e eu, pela sua presença, saí do grupo. Ela veio em meu socorro, interrogando-me acerca da causa de eu ter saído. Claro que não lhe respondi. Como podia eu explicar-lhe da frustração que eu sentia ao estar junto à minha rainha, descalço e de calças rotas. Como podia contar-lhe o quanto gostava dela, que eu tinha verdadeira adoração pelas suas tranças pretas e os seus profundos olhos negros, e que, mesmo não sendo adivinho, sabia que jamais a Cidália seria minha. A pobreza era a causa da minha exclusão.
Era por ela que eu tentava ser o melhor aluno da minha classe. Era por ela que eu sonhava ser cantor e, em qualquer lado, mesmo a estudar, trauteava uma canção, a pontos de o meu tio Ernesto –pessoa que muito me marcou, e que um dia destes falarei dele- me interrogar, admirado, como era possível estar a estudar e a cantar. Era por ela que eu, diariamente, depois das aulas acabarem, enquanto apanhava dois “feixes” (molhos) de erva para o gado, pensava: esta não é a vida que eu quero. Quando acabar a escola vou arranjar um emprego em Coimbra e um dia hei-de estar à tua altura, Cidália!
Por ironia do destino, a vida de negociante do senhor Lino, pai da Cidália, começou a correr mal, entrando em parcial insolvência, morreu precocemente. Entretanto, mal acabei a então quarta classe, logo no mesmo mês, vim mesmo trabalhar para Coimbra como tinha imaginado. Da Cidália nunca mais soube nada. Há décadas que desconheço a sua vida. Se, hipoteticamente, ela ler este texto, certamente vai rir-se. Tenho a certeza de que jamais imaginou que na minha infância foi a minha musa encantada.

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