quinta-feira, 10 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (10): O ONZEIRO

(RUA PRINCIPAL DE BARRÔ)

Como já escrevi em anteriores apontamentos sobre a minha aldeia, haviam cerca de quatro abastados lavradores e, para além deles, mais uns tantos que embora não o fossem a tempo inteiro, possuíam bastantes terras, em que davam trabalho aos rurais mais pobres, os alugados, que viviam em pequenas casinhotas, quase tugúrios. Para além do amanho das suas terras, aqueles “senhores”, importantes na povoação, tinham profissões nobres, como por exemplo na hotelaria. Hoje pouca gente se lembra, mas desde há cinquenta anos atrás que a freguesia de Luso e concelho da Mealhada era o berçário de Portugal que, através de mão-de-obra, abastecia a hotelaria de meio país. Era comum encontrar-se, desde o Minho ao Algarve, num qualquer restaurante, passando das mesas à cozinha, um empregado que era desta zona. Daqui saíram grandes chefes de cozinha, de mesa e grandes barmens. Hoje, os que restam, estão espalhados pelo continente e ilhas como empresários hoteleiros.
Ora, inevitavelmente, Barrô, a minha aldeia, também tinha nessa altura os seus grandes chefes de hotelaria. Um deles, de que vou falar, era o “Senhor” Manuel Ventosa –nome deturpado. Homem de avantajada barriga, e senhor de um ego enorme que mal cabia na rua principal da aldeia, quando falava escolhia as palavras mais esmeradas. Era chefe de mesas no Palace hotel da Curia. Tinha uma voz forte, que facilmente se impunha a uns tantos pobres camponeses alquebrados pelo peso da miséria. Para além de dar algum trabalho aos mais carenciados, como certamente ganhava bem -nesse tempo, para além do ordenado era costume receber-se boas gorjetas na hotelaria- ainda era um bocado forreta, e, como tal, tinha uns dinheiros aferrolhados, como quem diz, uns “contitos” que emprestava a juros aos mais necessitados. Como era costume desse tempo, estas pessoas, que emprestavam dinheiro a 11%, uma espécie de agiotas, eram conhecidas como onzeiros.
Se o financiado não merecia crédito era imediatamente despachado com a frase-mestra: “ó dianho, vieste mesmo numa altura desgraçada, se tivesses vindo ontem! Estou mesmo desprevenido, estou mesmo a tinir. Que pena!”
Se o “pedincha” merecia algum crédito, então a coisa já “chiava” mais fino. Então, nesse caso, toca de fazer o empréstimo difícil: “homem, como é que me vais pagar? Tu não tens nada, para além do ar que respiras e de uma ambição desmedida! Ah, queres dinheiro?! O dinheiro é a coisa mais séria deste mundo. Por ele se ama, por ele se mata, por ele perdem batalhas, por ele se fazem guerras. O dinheiro é sangue! Percebes, homem de Deus? É sangue que corre nos interstícios das gentes, que irmana e aparta”. Este discurso durava no mínimo duas horas. Quando o carenciado de dinheiro saía com os contos emprestados, normalmente sempre aquém do solicitado, levava consigo um estigma de pobre, um travo de amargura que lhe “amandava” a alma para o charco.
O senhor Ventosa tinha uma única filha, e para ela mil esperanças de um futuro radioso. Não seria um qualquer “pé-rapado” que levaria a sua “Margarida”. Quem levasse a sua Guida, obviamente só com a sua necessária autorização, tinha de ter dote. Jamais seria um malandro de um morcão qualquer. “Isso é que era bom”, pensava ele, amiúde vezes, para com os seus botões. Por isso trazia sempre a filha “à rédea curta”.
Então, um dia, negro e triste para sempre, o Ventosa descobriu que o seu “tesouro” andava a ser cortejado por um rapazola lá da aldeia. Que por sinal nem era filho de más famílias, até era bem “apessoado” e trabalhava num hotel em Coimbra, o problema era ser pobre. E isso não admitia. Só por cima do seu cadáver. Além disso, no seu íntimo, algo lhe dizia que o rapazola era demasiado aperaltado para a sua “mais-que-tudo” filha do seu coração. Tinha ar de “estoira-vergas”, um bocado para o petulante. Não batia a gota com a perdigota. Daí a proibir a rapariga de se encontrar com o marmanjo foi um passo. Mas, a rapariga não descolava do raio do valdevinos. “Isto é que é uma sina”, pensava. Ainda deu uns “enxertos” de pancada na rapariga, mas nem assim. O raio da cachopa tinha os olhos inclinados à remela e só tinha olhos para o don Juan.
Um dia deu-se o inevitável: a menina, feita mulher, farta da coacção física e psicológica do Ventosa, achou que valia mais um sonho na mão que mil futuros paternais a voar, combinando previamente com o amor da sua vida, durante a noite, saltando de uma janela de cerca de três metros de altura, fugiu com o seu amado para longe. Casou com ele, tiveram dois filhos, e durante alguns anos foram felizes. Mas, e aqui reside o busílis da questão, o Ventosa, que não era presciente, não adivinhava, ali acertou em cheio. O tempo veio dar-lhe razão, o don Juan depressa se cansou da Margarida e tomado de amores por outra, veio a separar-se desta, juntando trapinhos com o seu novo amor.
Durante meses, na aldeia não se falou de outra coisa. Com o estigma da vergonha, o Ventosa nunca mais foi o mesmo, e veio a morrer com esse peso no coração. Não tenho a certeza, mas suponho que em vida nunca veio a reconhecer e a afeiçoar-se aos seus netos.

5 comentários:

Anónimo disse...

Ó André, convidaste a pessoa certa para o "teu" blogue.Um contador de histórias que me dão muito prazer a ler,uma vez que as personagens envolvidas não me são estranhas assim como a aldeia de Barrô,aonde passei algum tempo da minha infância e aonde ainda vou com alguma frequência, pois tenho lá familiares.
Obrigado Sr.Luis Fernandes por estes momentos(claro,fico á espera de mais...)Bem Haja.

André Melo disse...

Por um mero acaso vi o blog deste nosso "conterrâneo" e não hesitei!
Para mim também é óptimo porque não me sinto tão só neste NOSSO espaço!

Um abraço

André Melo disse...

Já agora caro "burriqueiro" faça o favor de participar comentando ou "postando"!
Para "postar" envie-me um e-mail para andrealexandremelo@gmail.com que eu enviarei o convite!

Alcides Rego disse...

O Sr. Luis Fernandes continua a surpreender-nos com as histórias da sua aldeia.
Estas,relatam bem os usos e costumes deste povo, que se repetiam um pouco por todo o Portugal.
Devem ser dadas a conhecer aos vindouros, não por saudosismo mas antes para que contibuam para fazer a história deste povo.
Esta é um forma de contribuir para a divulgação da cultura popular.
Bem hajam por isso.

LUIS FERNANDES disse...

Meu amigo -permita-me tratá-lo assim- Alcides Vital, muito obrigado pelos seus encómios. Sinceramente, fico agradecido e sensibilizado. Palavra.
Já agora, a título de informação complementar, digo-lhe que, em princípio, todas estas histórias serão publicadas proximamente no Jornal da Mealhada, no qual colaboro.
Sinceramente, como já vou na 22º, e ainda não acabei, conto em vir a publicá-las em livro. A ver vamos.
Gostava de as ver publicadas noutros jornais aí da zona, mas -pelo menos o Jornal da Bairrada- aparentemente, não se mostraram interessados, como quem diz, nem resposta me deram.
Um abraço.
Luis Fernandes