terça-feira, 22 de julho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (22): AS VÁRZEAS DO MEU AMOR


(VISTA PARCIAL DE VÁRZEAS, ONTEM E HOJE -IMAGENS RETIRADAS, COM A DEVIDA VÉNIA, DO BLOGUE "ADELO.BLOGSPOT.COM")

Ainda não o escrevi, nesta longa série de memórias, mas, embora Barrô seja a aldeia onde me criei, e praticamente dela retenho todas as recordações, em boa verdade, não posso passar sem falar do lugar extraordinário onde vi a luz pela primeira vez. Nasci numa pequena aldeia próximo do Luso. Para quem não sabe, esta vila fica situada no sopé da serra do Buçaco. Como todos sabemos, ou pelo menos quem conhece, é uma terra encantada pela profusão de nascentes de água límpidas e cristalinas, medicinais e de mesa, que brotando das profundezas da terra, mostram a generosidade com que a natureza presenteou este lugar idílico e de sonho.
A povoação de que vou falar, e em que nasci, é atravessada pela linha da Beira alta, por uma longa ponte de ferro, que é um ex libris do génio humano, do grande arquitecto Gustave Eiffel. É uma das poucas pontes construídas em Portugal e saídas do engenho criativo do grande construtor da Torre Eiffel, em Paris. Este paradisíaco lugarejo, erguido há séculos num vale que certamente na era glaciar, há milénios, fora um rio, é circundado, quer por um lado quer por outro, por altas cercanias. As suas terras, como enclave, protegidas dos ventos, férteis para agriculturar, foram durante décadas o sustento dos seus autóctones. Era do amanho da terra negra e fértil, acompanhadas por um pequeno rio em toda a sua extensão, que se alimentavam as cerca de, aproximadamente, seis dezenas de pessoas, no ano em que nasci, em 1956.
Nesse tempo, para quem a visitasse, era uma aldeola como tantas outras, que, facilmente, poderia representar o postal ilustrado do Portugal esconso, atrasado e rústico, não fora algumas diferenças que a tornavam diferente, quer na afabilidade das suas gentes, quer num facto que, hoje, considero curioso: a aldeia, apesar de diminuta e de pouco poder económico, tinha na sua rua principal duas mercearias e tabernas. A primeira era a do senhor Vieira, bom homem, mas um pouco reservado e austero. A segunda, mesmo ao cabo da rua, junto ao largo da capela, era a mercearia e taberna do “ti Manel” sapateiro. Trato-o assim, de forma carinhosa, porque para além de assim ser reconhecido na época, era um pequeno homem na estatura, mas enorme na simpatia, tanto ele como a esposa, a “ti” Maria do Céu, que normalmente estava à frente do negócio de copos e mercearia. Para se aceder ao estabelecimento, descia-se uma série de degraus, uma vez que ficava abaixo do nível da rua.
“ti Manel” tinha a oficina de sapateiro, conjuntamente com a habitação, a meio da artéria principal. Era nesta arte ancestral, de manufactura de calçado, que ocupava os seus dias e, em complemento com o pequeno estabelecimento de mercearia, juntamente com os proveitos da terra cultivada, tudo junto, perfazia os seus parcos rendimentos, permitindo-lhe viver modestamente. Falei neste afável casal porque, curiosamente, consigo recordar, como se fosse hoje, o ar cândido, pessoa boa, de coração aberto, da “ti” Maria do Céu que quando me via dava-me sempre um rebuçado. Como tinha de passar, inevitavelmente, à frente da oficina do marido, do “ti Manel”, recordo, deste, o seu largo sorriso, sempre que me via. Com a sua voz palheta, mais para o agudo, parecendo envolver-me em mil abraços com as suas frases revigorantes e cheias de sentido anímico.
Quando eu fizera três anos, na procura de uma vida melhor, os meus pais abandonaram Várzeas e fomos viver mais para norte, para uma aldeia, Barrô, a cerca de mais de meia-dúzia de quilómetros. Então, como era tão acarinhado por toda a gente do pequeno lugarejo, era para mim um gosto indescritível de prazer sempre que lá voltava a visitar os meus avós e os meus tios. Teria eu cerca de quatro anos quando morreu a minha avó Madalena. Apesar da minha tenra idade, consigo, ainda hoje, visualizar a sua imagem e a sua cara ternurenta. De baixa estatura, anafada, de avental, sempre de avental, e o seu inesquecível rosto sofrido mas imensamente sereno.
O meu avô, ainda que tivesse morrido já eu com, mais ou menos, sete anos, curiosamente, não consigo relembrar os traços do seu rosto. No entanto, pasme-se, é pelo olfacto que chego à sua memória. Ele vivia, já depois de viúvo, num rés-do-chão, na rua principal da aldeia e tinha por costume espalhar serradura no chão. Hoje, seja onde for, numa serração ou noutro qualquer lugar onde haja serradura, pelo cheiro dela, lembro-me do meu avô Crispim.

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