terça-feira, 8 de julho de 2008

MEMÓRIAS DA MINHA ALDEIA: A CRIADA (8)

(UMA CRIADA DE SERVIR. EVIDENTEMENTE QUE NÃO É DESTA QUE FALO)

Era normal, por volta das décadas de 1950 até 1974, os lavradores mais abastados terem os seus criados. Hoje a palavra “criado”, é unanimemente reconhecida como resultado de um tempo pouco respeitoso para quem trabalhava por conta de outrem, tem um espírito imanente de blasfémia, indecoroso, uma exploração do homem lobo do homem. Tem acoplado a si um estigma de servir forçado, um espírito esclavagista. Nos nossos dias ninguém se refere a um seu colaborador como criado, mas sim como funcionário ou empregado. Até a palavra “serviçal”, que nada tem a ver com “criado” se tornou abominável e caiu também em desuso. Como todos sabemos esta dignidade reconhecida ao trabalhador só foi implementada com o 25 de Abril de 74, constituindo matéria fundamental da Constituição Portuguesa de 1976.
Em meados do século passado, era vulgar homem ou mulher irem trabalhar ainda crianças para casa dos “senhores”, onde lá casavam, ficando, após o enlace, os dois consortes a viverem num anexo à casa do “senhor” lavrador abastado. Estes criados eram “pau para toda a colher”, tanto cuidavam das terras, como dos imensos animais, quer utilizados na agricultura, quer na alimentação, como, por exemplo, bois e vacas, dezenas e dezenas de galinhas, cabras, ovelhas e imensos porcos para matança. Para além disso, ainda cuidavam da limpeza da casa e de todas as necessidades dos seus patrões. Embora pouco usual, mas há casos em que alguns grandes proprietários que, não tendo filhos, em reconhecimento de uma vida servil e leal, vieram a testar os seus criados em toda a sua imensa fortuna.
Depois desta resenha histórica, vou falar de uma criada muito especial que trabalhava na minha aldeia, em Barrô, em casa de uma família abastada, por volta do início dos anos 60, o senhor Matos. Curiosamente, ainda também familiar afastado, por laços consanguíneos, do meu pai.
Esta criada, a Cremilde, que salvo erro era de Grada, uma povoação próxima, era uma mulher extraordinária, embora nova, talvez à época com vinte anos, tinha uma vivacidade contagiante. Muito esperta, muito simpática e, ao mesmo tempo, muito liberal, fora daqueles convencionalismos bacocos próprios daquele tempo. Era como se aquela rapariga, em pleno atraso de meados do século, pertencesse ao século XXI. Como se todos estes atributos não chegassem era lindíssima. Era pequenina, tipo “mignon”, um torrãozinho de açúcar de cabelo curto. Os olhos da Cremilde eram profundos. E nem só os olhos, a pele de um moreno cálido, que apetecia afagar, umas ancas roliças, não exageradas, e uns pequenos seios firmes. Mas o que mais impressionava era a sua vivacidade, o seu espírito inquieto, que apetecia tomá-la nos braços e saborear aquela vida resplandecente que, como aura, saía dela como torrentes de água pura. A Cremilde era a esperança e, ao mesmo tempo, a frustração. Tão depressa parecia oferecer o céu, como, de repente, sem se saber porquê, certamente se detectasse umas intenções para além das suas limitações, tornava-se turbulenta, cheia de nuvens negras, deixando qualquer homem desnorteado. Era essa ambiguidade que desconcertava. Lembro-me de o “Pinhão” –um bardino, um estroina malandrote, que viria a suicidar-se, e que em próximo apontamento falarei dele- andar à volta dela, como abelha a zumbir em volta da flor, procurando o seu pólen.
Um dia, no início dos anos 60, em Janeiro, por altura da festa anual da terra, em honra do mártir S. Sebastião, no bailarico, que nessa altura foi feito em frente à casa do senhor Lino, ao fundo do lugar, por ter maior espaço que o terreiro da Capela, um cigano, de um grupo de dois ou três, apercebendo-se da rara beleza da Cremilde, foi-lhe pedir para dançar. Esta, que não era de modas, certamente não gostou da cara dele, e evidentemente que negou. Aquele, habituado ao seu estatuto de temor, insistiu, chegando à má-criação. A Cremilde não foi de modas e paf!, um valente sopapo no cigano. Calculemos a cara do homem. Certamente não se enterrou pelo chão abaixo porque não dava. Vai daí, como cigano não leva desaforo para casa, toca de puxar a rapariga pela força. O povo ao ver a violência em perspectiva sobre a mulher, juntam-se e toca de chegar a “roupa ao pelo” aos descendentes de leste. Ao verem-se acossados, mais não fizeram do que dar ao slide. No espaço de fuga de 100 metros, entre o fundo do lugar e o largo da Capela, anavalharam umas quatro pessoas que nada tinham a ver com o assunto, iam tranquilamente a passar. Um deles, o senhor Francisco Rocha, já falecido, ficou com marcas para o resto da vida, nunca mais deixou de coxear. Quando lhe falavam em ciganos o homem ficava branco como a cal da parede.

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